27 de dezembro de 2019

Valter Hugo Mãe: pinceladas de desumanização na história da irmã gémea da criança bonsai

«Venho para te cortar os dedos em moedas pequenas e com elas pagar ao coração o mal que me fizeste. O pior amor é este, o que já é feito de ódio também…»
Valter Hugo Mãe, A desumanização (2013)
É assombroso o número de autores e obras que ouvimos referir todos os dias, com os melhores elogios que a língua falada permite tecer, sem termos passado os olhos por nenhuma linha de palavras por si desenhadas com carateres tipográficos. Se, como dizem, o ato de ler está em crise nos dias que correm, a capacidade de escrever, em contrapartida, está mais forte do que nunca. Prolifera como os cogumelos silvestres em terreno húmido. Valter Hugo Maia surgiu no meu quadro de referências como uma dica de leitura, proferida à beira-mar e em tempo de praia, no cenário duma conversa despreo-cupada a cheirar a protetor solar e com a boca lambuzada duma bola-de-berlim. O tal que tinha uma queda muito peculiar para manejar a prosa poética e cujo nome deveria grafar-se com iniciais minúsculas. Ao que parece, porque a abolição das maiúsculas tor-naria mais célere o registo e decifração das mensagens. Opiniões. Declino seguir tais experimentalismos gastos pelo uso, até porque não a vi concretizada uma só vez no volume d’A desumanização (2013), o romance que tenho entre mãos e me abriu as portas para os universos narrativos do escritor luso-angolano, com créditos ainda firmados como vocalista num grupo musical e outras habilidades mais nas artes protegidas pelas musas

Alguém que trata a literatura por tu há longa data confiou-me sentir uma profunda deceção pelo rumo tomado pelos novos talentos da ficção portuguesa, pela tendência de só se identificarem de facto com a matriz cultural do país que os viu nascer ou crescer por mero acaso ou descuido. O desenraizamento seria total e programático. Acredito na autenticidade do aviso que me foi transmitido em tom de lamento sentido sem, todavia, o poder confirmar ou refutar integral-mente. O hábito arreigado de me manter fiel aos vultos consagra-dos nestas lides das letras que contam histórias tem-me afastado do convívio dos que ocupam o horizonte ainda longínquo duma canoni-zação futura. A minha entrada neste universo inventivo do terceiro milénio, materializada no relato em apreço, veio dar certa razão ao diagnóstico traçado em jeito de boca provocatória, de boutade diver-tida ou de sarcasmo dorido. Coincidências ou talvez não. Os dados estão lançados na pesquisa e os resultados à vista. A incursão noutros instâncias narrativas destas gerações das derradeiras pós-modernidades terá de esperar por novas oportunidades.

A verdade é que o relato se faz no idioma materno, que aprendeu a modelar com sotaque africano e europeu ao longo de quatro décadas e picos de aprendizagens existenciais, mas com localização na remota Islândia, país de vulcões semiadormecidos e de géiseres bem-acordados, de charnecas geladas, de montanhas cobertas de neve, de fiordes talhados pela força telúrica dos glaciares em perpé-tuo movimento. Podia situar-se na Cochinchina, na Patagónia ou nas paragens recônditas das Terras-do-Nunca, que o efeito de exótico pretendido estaria sempre garantido. Fala-se da Ilha-do-Gelo do Atlântico Norte com o mesmo à-vontade com que se falaria da Terra-do-Fogo do Atlântico Sul ou de qualquer outro finisterræ sem loca-lização precisa num mapa real de terras concretas ou idealizadas. Liberdade criativa perfeitamente legítima na república das letras que, aliás, não põe em causa a qualidade intrínseca à fábula e da tessitura verbal com que é urdida. Um longo monólogo interior da protagonista, completado com um ou outro breve diálogo exterior travado com os deuteragonistas. Memória dolorosa composta com uma mão-cheia de imagens reunidas numa infindável metáfora continuada de duzentas e tantas páginas. Histórias de amor-morte e de paixão-ódio, dicotomias escolhidas para definir a humanidade dos seres pensantes ou a desumanização da sua passagem pela vida. Recordações amargas da irmã gémea da menina bonsai, aquela que foi tragada pela boca de deus antes de tempo, aquela que ao partir deixou o mundo divido por metade ao seu redor, aquela que foi plantada para que germinasse de novo e não germinou. 

Depois de concluídos os relatos da menos morta das crianças, o artífice das histórias fingidas conta-nos outra verdadeira. Pessoal. Fá-lo numa nota de autor dirigida aos leitores. Quando nasceu já o seu irmão Casimiro havia morrido. Durante toda a infância imaginou-o à sua imagem. Especular. Sabia-o deitado na terra como se fosse uma semente. E achou que dele brotaria um dia um fruto. Podia ter sido um pêssego, mas não foi. Dessa árvore concebida até à idade adulta surgiu um livro. Este de que se fala. Pretexto para fabricar uma declaração de amor extensível a um país de rara sensibilidade e beleza estética. Esquisita. As raízes, afinal, estavam presentes na fábula desde os primeiros momentos, ainda que fincadas nos fiordes gelados do oeste islandês.

NOTA
Trago para este espaço um texto que publiquei há meia dúzia de anos no Pátio de Letrasporque em tempos natalícios é bom que apela à recuperação duma humanidade perdida e que convém recuperar...

22 de dezembro de 2019

Invernos em verso & tela

Marc Chagall - L'hiver (1966)

Quando está frio no tempo frio...
Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse
                                                                               [agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das coisas
O natural é o agradável só por ser natural.
Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do inverno—
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no facto de aceitar—
No facto sublimemente científico e difícil de aceitar o natural    
                                                                                  [inevitável.
Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o inverno da minha pessoa e da minha vida?
O inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do verão
E o frio da terra no cimo do inverno.
Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de querer compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência.
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer coisa que não fosse o Mundo.
Fernando Pessoa | Alberto de Caeiro, «Poemas inconjuntos» (1946)

16 de dezembro de 2019

Oscar Wilde e as verdades escondidas no retrato de Dorian Gray

‘How sad it is!’ murmured Dorian Gray, with his eyes still fixed upon his own portrait. ‘How sad it is! I shall grow old, and horrid, and dreadful. But this picture will remain always young. It will never be older than this particular day of June…. If it was only the other way! If it was I who were to be always young, and the picture that were to grow old! For this—for this—I would give everything! Yes, there is nothing in the whole world I would not give!’
O mistério do movimento aparente do olhar na pintura sempre me fascinou e deixou intrigado na presença desse efeito visual algo paradoxal captado numa imagem estática a duas dimensões. Tê-la-ei observado pela primeira vez numa diversidade de quadros expostos no Museu José Malhoa das Caldas da Rainha. A associação das estéticas naturalistas aplicadas às artes plásticas e literárias foi-me transmitida numa visita de estudo preparada pelo meu professor de Português a esse espaço no início da década de 60. A atenção centrou-se na feição estética que Henrique Medina (1901-1988) dera a uma Rapariga da Galiza que pela forma de trajar bem podia ser oriunda da antiga província do Minho. Estávamos a estudar nessa altura as novelas campesinas de Júlio Dinis e a interpretação costumbrista de cariz romântica vinha mesmo a calhar. Palavra puxa-palavra, ficámos a saber ser esse pintor considerado à época o mais famoso retratista português vivo, o tal que tinha criado um óleo a cores de Hurd Hatfield, o ator que personificara o anti-herói desenhado por Óscar Wilde em The Picture of Dorian Gray (1890) e adaptado ao cinema em 1945 por Albert Lewin para a Metro-Goldwyn-Mayer num filme a preto e branco.

Possuo uma velha edição do livro que acabei de visitar coisa de dias, mas só agora visualizei o trailler oficial da película no admirável mundo novo da Net. Foi também que encontrei uma reprodução da tela, magnífica na técnica utilizada para lhe dar corpo, apesar de se situar a anos-luz da realidade desenhada nas páginas dum romance gótico oitocentista, composto em inglês por um autor irlandês. A culpa talvez resida na estrela hollywoodesca escolhida pelos estúdios americanos, incapaz como modelo de traduzir o secreto encanto angelical descrito na versão escrita do protagonista da fábula. Agregue-se a dificuldade de plasmar na tela filmada as contínuas alterações que a tela pintada vai revelando em primeira instância ao retratado na ficção por Basil Hallward e em segunda mão aos leitores pela entidade narrativa, sem recorrer a efeitos especiais que a cinematografia da época não tivesse ainda desenvolvido.

A história é conhecida e dispensa uma explanação alongada. O leitmotiv assenta no pacto proferido pela figura fulcral do relato, ao confrontar-se com a beleza ideal da sua juventude, espelhada para sempre no óleo que o representava na sua máxima pujança, enquanto o processo de envelhecimento imposto pela natureza se abateria inexoravelmente sobre si. Horrorizado com a crueldade do destino, manifesta aos amigos estar disposto a dar tudo o que tinha e alguma vez viesse a ter, a vender a própria alma ao diabo se tal fosse necessário, para inverter por completo a ordem dos factos. Manter-se perpetuamente jovem e transferir a deterioração do corpo que o fluir implacável do tempo lhe traria para a superfície pintada do quadro. Assim foi. O percurso dos eventos narrados confirmá-lo-á à exaustão. Os termos do acordo ajustado sem se saber muito bem a quem se desfaz quando o retratado tenta eliminar as marcas inde-léveis da sua degradação física e psíquica registada traço-a-traço, ponto-a-ponto, mancha-a-mancha no retrato e o insólito desfaz-se por magia como se nunca tivesse existido.

O mito da eterna juventude está na moda. Se calhar esteve sempre. O recurso a plásticas, implantes, dietas, infiltrações, ginásios e o diabo a sete para manter o primado da beleza a vida inteira são recorrentes. O narcisismo, a superficialidade, a vaidade, o egotismo e o vale-tudo pululam nas redes sociais e revistas cor-de-rosa das celebridades do momento. O ator central do drama limita-se a formular um desejo imediatamente satisfeito à revelia de todas as forças conhecidas da razão. A singularidade resolve-se através dos poderes transcenden-tes do maravilhoso instrumental. O quadro passa a funcionar como um espelho mágico capaz de revelar a cada instante as sucessivas metamorfoses da alma, fruto da crueldade, insensibilidade, frieza, amoralidade e hipocrisia, que a falta de caráter e o culto desenfreado por um hedonismo filosófico mal-assimilado podem conduzir sem o conseguir obliterar. Os atores descartáveis das novelas televisivas reduzidos a estrelas-cadentes da vida real que se cuidem. É que o universo das mezinhas prodigiosas do sucesso imediato e perene existe nas utopias delirantes do faz-de-conta, posta ao nosso dispor como imagens invertidas de locais distantes, miragens inacessíveis dum ser-e-parecer sempre presente e inexoravelmente ausente.

HENRIQUE MEDINA
Retrado de Hurd Hatfield no papel de Dorian Gray 

12 de dezembro de 2019

A epopeia ucrónica do Inca Atahualpa

ATAHUALPA INCA XIV.
[Museo Nacional de Arqueología, Antropología e Historia del Perú - Lima ]
Ucronia
[Quando se pode imaginar] o que teria acontecido se aquilo que realmente aconteceu tivesse acontecido de maneira diferente...
Umberto Eco, «Os mundos da ficção científica» (1985)

...Quando se pode imaginar que o Sapa Inca Atahualpa escapou à conquista do Peru por Francisco Pizarro, atravessou o grande Mar Oceano, desembarcou na Europa de Carlos Quinto e um vate desconhecido lhe dedicou uma epopeia composta à maneira d'Os Lusíadas de Camões...

          Les Incades

          chant I, strophe 1
          Ô vous, hommes vaillants de plages si lointaines
          Qui, partis d'Occident, avez par vos exploits,
          Soumis bien au-delà de ces côtes cubaines
          Des mers qu'on sillonnait pour la première fois ;
          Ô vous, qui méprisant les vents et les tempêtes
          À travers les dangers, les combats de géants,
          Parvîntes à poser, pour prix de vos conquêtes,
          D'un Empire nouveau les premiers fondements.


          chant I, strophe 11
          Voyez, ce ne sont point des promesses menteuses
          De fantastiques faits, inventés à plaisir,
          Comme chez l’étranger, dont les Muses flatteuses
          Trouvent le vrai trop simple et veulent l’embellir.
          C’est ici le réel qui surpasse la fable
          Et tout le merveilleux qu’on avait pu songer,
          Et Roland, quand bien même il serait véritable
          Et le fort Rodomont, et le bouillant Roger.

          chant I, strophe 20
          C'est alors que les dieux du Cinquième Quartier
          D'où partent les décrets gouvernant les humains
          Durent se réunir en auguste assemblée
          Pour régler d'Orient, le sort et les destins.
          Sur le sol radieux du séjour de lumière
          Par la voie étoilée on les vit accourir,
          Ils viennent sur l'appel du Maître du Tonnerre
          Qui par son messager les a fait avertir.

          chant I, strophe 24
          Immortels habitants du lumineux Empire
          Du firmament serein, du Pôle de splendeur
          Vous vous rappelez tous sans l'entendre redire,
          Que de forts Quiténiens la brillante valeur
          A de hauts faits sans nombre illustré leur histoire,
          Et que ce peuple aura par la Loi des Destins
          Un grandiose avenir effaçant la mémoire
          Des Assyriens, des Grecs, des Persans, et Romains.

          chant I, strophe 74
          Il paraît que le Sort en son caprice ordonne,
          Que ces fiers Quiténiens partout victorieux,
          Imposeront leur joug, et la loi de Bellone
          Sur les peuples d'Europe aguerris et nombreux.
          Et moi, fils d'un père, entre les dieux Auguste,
          Qui de titres si grands puis me glorifier,
          Tranquille, je verrais que le Destin injuste
          Élève un nouveau nom qui doit m'humilier.

          Laurent BinetCivilizations (Paris: Grasset, 2019, pp. 110, 148, 167, 175-176, 178)

6 de dezembro de 2019

Histórias pastorais de Dáfnis e Cloé relatadas por Longus de Lesbos

Lebes Gamikos
(Ática: circa 430-420 AEC)
[Tubingen, Eberhard-Karls-Universität, Archäologisches Institut 5643]
«Ἐν Λέσβῳ θηρῶν ἐν ἄλσει Νυμφῶν θέαμα εἶδον κάλλιστονὧν εἶδον· εἰκόνα γραπτήν, ἱστορίαν ἔρωτος. Καλὸν μὲν καὶ τὸἄλσος, πολύδενδρον, ἀνθηρόν, κατάρρυτον· μία πηγὴ πάνταἔτρεφε, καὶ τὰ ἄνθη καὶ τὰ δένδρα· ἀλλ´ ἡ γραφὴ τερπνοτέρα καὶτέχνην ἔχουσα περιττὴν καὶ τύχην ἐρωτικήν· ὥστε πολλοὶ καὶτῶν ξένων κατὰ φήμην ᾔεσαν, τῶν μὲν Νυμφῶν ἱκέται, τῆς δὲεἰκόνος θεαταί. Γυναῖκες ἐπ´ αὐτῆς τίκτουσαι καὶ ἄλλαισπαργάνοις κοσμοῦσαι, παιδία ἐκκείμενα, ποίμνια τρέφοντα, ποιμένες ἀναιρούμενοι, νέοι συντιθέμενοι, λῃστῶν καταδρομή, πολεμίων ἐμβολή. Πολλὰ ἄλλα καὶ πάντα ἐρωτικὰ ἰδόντα με καὶθαυμάσαντα πόθος ἔσχεν ἀντιγράψαι τῇ γραφῇ· καὶἀναζητησάμενος ἐξηγητὴν τῆς εἰκόνος τέτταρας βίβλουςἐξεπονησάμην, ἀνάθημα μὲν Ἔρωτι καὶ Νύμφαις καὶ Πανί, κτῆμα δὲ τερπνὸν πᾶσιν ἀνθρώποις, ὃ καὶ νοσοῦντα ἰάσεται, καὶλυπούμενον παραμυθήσεται, τὸν ἐρασθέντα ἀναμνήσει, τὸν οὐκἐρασθέντα προπαιδεύσει. Πάντως γὰρ οὐδεὶς ἔρωτα ἔφυγεν ἢφεύξεται, μέχρις ἂν κάλλος ᾖ καὶ ὀφθαλμοὶ βλέπωσιν. Ἡμῖν δ´ ὁθεὸς παράσχοι σωφρονοῦσι τὰ τῶν ἄλλων γράφειν.»
O nascimento absoluto do romance como género autónomo e com um leve fundo histórico surgiu no mundo helenístico, no seio dos relatos de amor e aventuras peregrinas. Tudo terá começado no final da Era Axial (c. 800-200AEC), aquela que marca o ponto de partida das atuais correntes de pensamento: o confucionismo e o tauismo na China, o budismo e o bramanismo na Índia, o monoteísmo persa e judaico no Médio Oriente e o racionalismo grego na Europa. Foi neste curto período de tempo que as grandes matrizes culturais ganharam forma e deram corpo à unidade e diversidade da criatividade humana. O universo das letras viu emergir a poesia lírica e épica, a tragédia e a comédia, e as inúmeras modalidades da ficção, que passámos a designar conto, novela e romance.

Deve-se à capacidade inventiva de Longus de Lesbos o mérito de ter convertido o Dáfnis e Cloé (sécII EC) no mais lido texto hoje em dia da série diegética grega, apesar de ser o que se afasta mais do modelo canónico que até nós chegou. Ignora as referências históricas, reduz as aventuras peregrinas ao mínimo, desloca o espaço cénico da cidade para o campo, elimina o tradicional coup de foudre inicial e centra-se no longo processo de descoberta amorosa vivido pelos protagonistas. Estabelece, em suma, as coordenadas estruturais que estarão na génese da novela pastoril, um paradigma genérico de sucesso que gozará de grande popularidade na literatura bucólica europeia dos séculos de ouro.

Nas imediações rurais de Mitilene, a maior cidade da ilha de Lesbos, dois recém-nascidos são expostos à mercê das forças da natureza, tuteladas pela proteção divina de Pã e das Ninfas, a que se juntará ainda Eros, o deus do amor. Dafnis e Cloé são encontrados por dois zagais de condição servil, que os acolhem e educam como pastores. As duas crianças crescem juntas até atingirem a puberdade. O conví-vio quotidiano na companhia dos rebanhos, a existência saudável ao ar livre e o ambiente bucólico envolvente ajudaram-nas a descobrir por si sós os mistérios primordiais da vida. A paixão brota quando ela o banhar-se num riacho e ele é beijado no rosto. O processo de enamoramento prossegue até ao desenlace espectável: o casamento dos protagonistas, depois de terem descoberto as suas origens citadinas e de terem resolvido ficar no campo onde a sua história comum até então se fizera.

O alicerce dos livros novelados de pastores estava lançado, mas o novo edifício genérico teve de esperar 1200 anos para ganhar forma. Deveu-se a Jacopo Sannazaro com a Arcádia (1504), que adaptou o modelo grego antigo à realidade quinhentista italiana. Escreveu-a em florentino, com a função de instruir e divertir os leitores, e introduziu o prosímetro, i.e., a alternância das formas versificadas e prosaicas na estrutura discursiva. O exemplo foi seguido no espaço ibérico por Jorge de Montemor com a Diana (1561), composta em castelhano com algumas líricas em português. O cânon estava pronto para influenciar toda a produção literária europeia até ao advento da Revolução Francesa, momento em que novos paradignas foram ensaiados e desenvolvidos com maior e menor sucesso editorial.

A pastoral clássica deixou de despertar o interesse apaixonado dos emissores-recetores atuais. A mensagem do locus amœnus muito que passou a ser procurado noutras latitudesAs peregrinationes vitæ dos nossos dias fazem-se sobretudo aos fins de semana e feriados nos shoping center das cidades. As idas aos campos passaram de moda. As fugas momentâneas até podem residir no refúgio do grande ecrã dum cinema ou no pequeno dum televisor. Foi num destes espaços que dei comigo a confrontar as soluções encontradas por Randal Kleiser n'A lagoa azul (1980), filme em que dois adolescentes naufragados numa ilha deserta acabam por aprender as regras fundamentais da sobrevivência e do amor. A lição de Dáfnis e Cloé voltou a ser dada, lembrando-nos que, em Arte, as obras se tornam intemporais e estão sempre dispostas a fazer-nos companhia quando delas necessitamos.