16 de dezembro de 2019

Oscar Wilde e as verdades escondidas no retrato de Dorian Gray

‘How sad it is!’ murmured Dorian Gray, with his eyes still fixed upon his own portrait. ‘How sad it is! I shall grow old, and horrid, and dreadful. But this picture will remain always young. It will never be older than this particular day of June…. If it was only the other way! If it was I who were to be always young, and the picture that were to grow old! For this—for this—I would give everything! Yes, there is nothing in the whole world I would not give!’
O mistério do movimento aparente do olhar na pintura sempre me fascinou e deixou intrigado na presença desse efeito visual algo paradoxal captado numa imagem estática a duas dimensões. Tê-la-ei observado pela primeira vez numa diversidade de quadros expostos no Museu José Malhoa das Caldas da Rainha. A associação das estéticas naturalistas aplicadas às artes plásticas e literárias foi-me transmitida numa visita de estudo preparada pelo meu professor de Português a esse espaço no início da década de 60. A atenção centrou-se na feição estética que Henrique Medina (1901-1988) dera a uma Rapariga da Galiza que pela forma de trajar bem podia ser oriunda da antiga província do Minho. Estávamos a estudar nessa altura as novelas campesinas de Júlio Dinis e a interpretação costumbrista de cariz romântica vinha mesmo a calhar. Palavra puxa-palavra, ficámos a saber ser esse pintor considerado à época o mais famoso retratista português vivo, o tal que tinha criado um óleo a cores de Hurd Hatfield, o ator que personificara o anti-herói desenhado por Óscar Wilde em The Picture of Dorian Gray (1890) e adaptado ao cinema em 1945 por Albert Lewin para a Metro-Goldwyn-Mayer num filme a preto e branco.

Possuo uma velha edição do livro que acabei de visitar coisa de dias, mas só agora visualizei o trailler oficial da película no admirável mundo novo da Net. Foi também que encontrei uma reprodução da tela, magnífica na técnica utilizada para lhe dar corpo, apesar de se situar a anos-luz da realidade desenhada nas páginas dum romance gótico oitocentista, composto em inglês por um autor irlandês. A culpa talvez resida na estrela hollywoodesca escolhida pelos estúdios americanos, incapaz como modelo de traduzir o secreto encanto angelical descrito na versão escrita do protagonista da fábula. Agregue-se a dificuldade de plasmar na tela filmada as contínuas alterações que a tela pintada vai revelando em primeira instância ao retratado na ficção por Basil Hallward e em segunda mão aos leitores pela entidade narrativa, sem recorrer a efeitos especiais que a cinematografia da época não tivesse ainda desenvolvido.

A história é conhecida e dispensa uma explanação alongada. O leitmotiv assenta no pacto proferido pela figura fulcral do relato, ao confrontar-se com a beleza ideal da sua juventude, espelhada para sempre no óleo que o representava na sua máxima pujança, enquanto o processo de envelhecimento imposto pela natureza se abateria inexoravelmente sobre si. Horrorizado com a crueldade do destino, manifesta aos amigos estar disposto a dar tudo o que tinha e alguma vez viesse a ter, a vender a própria alma ao diabo se tal fosse necessário, para inverter por completo a ordem dos factos. Manter-se perpetuamente jovem e transferir a deterioração do corpo que o fluir implacável do tempo lhe traria para a superfície pintada do quadro. Assim foi. O percurso dos eventos narrados confirmá-lo-á à exaustão. Os termos do acordo ajustado sem se saber muito bem a quem se desfaz quando o retratado tenta eliminar as marcas inde-léveis da sua degradação física e psíquica registada traço-a-traço, ponto-a-ponto, mancha-a-mancha no retrato e o insólito desfaz-se por magia como se nunca tivesse existido.

O mito da eterna juventude está na moda. Se calhar esteve sempre. O recurso a plásticas, implantes, dietas, infiltrações, ginásios e o diabo a sete para manter o primado da beleza a vida inteira são recorrentes. O narcisismo, a superficialidade, a vaidade, o egotismo e o vale-tudo pululam nas redes sociais e revistas cor-de-rosa das celebridades do momento. O ator central do drama limita-se a formular um desejo imediatamente satisfeito à revelia de todas as forças conhecidas da razão. A singularidade resolve-se através dos poderes transcenden-tes do maravilhoso instrumental. O quadro passa a funcionar como um espelho mágico capaz de revelar a cada instante as sucessivas metamorfoses da alma, fruto da crueldade, insensibilidade, frieza, amoralidade e hipocrisia, que a falta de caráter e o culto desenfreado por um hedonismo filosófico mal-assimilado podem conduzir sem o conseguir obliterar. Os atores descartáveis das novelas televisivas reduzidos a estrelas-cadentes da vida real que se cuidem. É que o universo das mezinhas prodigiosas do sucesso imediato e perene existe nas utopias delirantes do faz-de-conta, posta ao nosso dispor como imagens invertidas de locais distantes, miragens inacessíveis dum ser-e-parecer sempre presente e inexoravelmente ausente.

EDUARDO MEDINA
Retrado de Hurd Hatfield no papel de Dorian Gray 

3 comentários:

  1. Sempre a aprender. Não sabia que Henrique Medina tinha pintado o quadro do ator que interpretou Dorian Gray no filme, que por acaso vi há uns anos num canal da TV e de que gostei. Apesar das limitações, o enredo dramático, que já conhecia do livro de Oscar Wilde, compensou. A beleza, esse mito que o Homem persegue e que por vezes o cega, ao menos tem na arte uma expressão maravilhosa...

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    1. Pintou-o e é a única parte do filme em que a cor substitui o preto e branco com que o cinema se fazia então habitualmente.

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  2. Eu assisti Dorian Gray no cinema em 2009. Eu experimentei esse filme muito emocionalmente. Isso é incrível. Isso traz muita ansiedade. Ainda me lembro de cenas deste filme. As informações do blog são muito interessantes.

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