25 de abril de 2020

Baladas do nosso amargo cancioneiro


«O escritor "pode" considerar a Política como exterior ou indiferente às suas preocupações essenciais. A Política é que não é da mesma opinião e o considerará a ele no interior das "suas" preocupações.»
Eduardo Lourenço
Hoje não vou ouvir de manhã à noite as músicas votivas do dia da liberdade. O ambiente de enfermaria ainda está  muito presente  na minha memória para abraçar de ânimo leve as grandes manifestações de júbilo revolucionário. Também não me parece que vá assistir pela televisão à transmissão das cerimónias oficiais na Assembleia da República, reduzidas ao mínimo e no meio de grandes polémicas dignas das guerras de alecrim e manjerona, de quem se recusa a entender o real significado do ato. Por experimentar terá de ficar igualmente uma Grândola cantada na hora acordada à janela, que a voz ainda não dá para tais habilidades canoras. E com confinamentos e quarentenas em vigor, por via dum COVID-19 indesejado, a saída para viver em 2020 o 25 de Abril de 1974 na rua estava condenada logo à partida.

Hoje vou seguir um roteiro diferente. Vou cantar mentalmente cada uma das cantigas, canções, cantos e contracantos d'O nosso amargo cancioneiro, compilado por José Viale Moutinho em 1972. Uma quase centena de poemas musicados em forma de baladas de intervenção, estimulantes e provocadoras, um libelo de sensibilização política, rascunho de obra de maior esforço, como se refere no prefácio. Poetas, compositores e intérpretes a darem  corpo e voz às palavras das trovas e lendas dos tempos pretéritos e do porvir. Ouvi-as e entoei-as vezes sem conta em convívios académicos ou encontros de amigos, numa semi ou total clandestinidade e nos locais mais insuspeitos de Lisboa. Por vezes na companhia dos cantautores, que se faziam acompanhar por uma ou outra guitarra. José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, José Jorge Letria, Vitorino, Carlos Alberto Moniz, Ruy Mingas. Artes poéticas próprias e alheias. Alexandre O'Neill, Sophia de Mello Breyner, António Gedeão, Carlos de Oliveira, Hélia Correia, Natália Correia, José Saramago. Sentados no chão, saudávamos os ausentes e entoávamos em coro o Francisco Fanhais, o José Mário Branco, o Manuel Freire, o Sérgio Godinho. E o canto livre à procura doutras liberdades fazia-se assim.

Hoje vou começar com um «Epigrama» de Afonso Duarte e Luís Cília (Há só mar no meu país [...] é ele quem sou) e vou terminar com uma «Canção para uma manhã diferente» de Vieira da Silva (Somos andorinhas negras [...] da manhã nunca encontrada). O alfa e ómega dum amargo cancioneiro que guardo religiosamente há quase meio século. De permeio trautearei em surdina algumas dezenas mais de miniepopeias em verso variado que contam a história dum país em busca de novos rumos. Repetir como as gentes da Beira Baixa:  Viva a malta, trema a terra | Daqui ninguém arredou! | Quem há de tremer na guerra | Sendo homem como eu sou? Testemunho precioso de percursos espinhosos, trilhados por uma geração que olhava em frente como filha da madrugada, que viveu a guerra para conquistar a paz. Livrinho gasto pelo tempo e preservado pelas memórias que cantam a vida que fomos e levamos connosco, dentro de nós, por aí fora.

21 de abril de 2020

As janelas do meu quarto


AMADEO DE SOUZA-CARDOSO


As janelas do meu quarto de enfermaria dão para um espaço urbano despejado de gentes. Foram substituídas pela passarada que em bailados frenéticos aproveitam uma liberdade até há bem pouco desconhecida. Aberturas privilegiadas para um exterior interdito, permitem-me assistir ao nascer e ao pôr do sol, à alternância cíclica entre a iluminação artificial da noite e a natural do dia. Por uma delas, consegui acenar à distância de dois andares à minha mulher e filha. Momento único e inesquecível. Chamámos-lhe janela dos namorados.

Entre paredes dum hospital, recordo-me das janelas lá de casa, amplas e abertas para a vida. Entre o mar e a montanha, avistamos a praia de Faro e da Ria Formosa, o farol meridional da ilha da Culatra e vislumbramos alguns cerros da serra do Caldeirão. No centro deste cenário, reina o bairro piscatório de São Pedro, constituído por açoteias dispostas em anfiteatro. Olhamos pelo jardim suspenso da varanda. Morangos, framboesas, mirtilos, pitangas, cunquates, fisálias, ervas aromáticas e tomates cherry. Paraíso perfeito onde é bom viver e dá vontade de regressar.

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As janelas do meu quarto não são coloridas como as janelas coloridas pelo Amadeo de Souza-Cardoso nas Casitas Claras de 1915/16. Não foram pintadas para ser penduradas numa parede especialFazem parte da própria estrutura que as sustém. Levam em si todas as possibilidades que o branco lhes dá, que é o conjunto de todas as cores dum arco-íris. Estão abertas de par em par para a luz solar que brota dia a dia do exterior. Atentas à estação do ano em que se esteja a recebê-la. As minhas janelas são a emanação da própria vida a superar as subtilezas criadas  pela arte.

19 de abril de 2020

Brexit com ingleses à vista

  Vizinhos  de  enfermaria... 

Quando o momento chegou, o Reino Unido abandonou a União Europeia e acantonou-se nas ilhas do além-Mancha, que lhes servem de morada há tempos ancestrais. Batizaram esse êxodo de Brexit. Alguns residentes de longa data resistiriam à partida e resolveram ficar. Regra geral, vivem em comunidades fechadas como se tratasse de verdadeiras colónias do antigo e extinto Império Britânico.

Desde que aqui cheguei já me cruzei com três desses cidadãos. Só um falava português com um forte sotaque inglês percetível. Mantivemos um bom relacionamento enquanto fomos vizinhos de quarto. Outro apreendeu a dizer quatro palavras em 22 anos: Olá, obrigada, boa tarde. Um papagaio não faria melhor. O restante estava impedido de falar mas só reagia quando se lhe dirigiam em inglês.

Felizes criaturas estas que continuam a julgar-se os senhores do mundo, a quem todos devem uma vassalagem medieval. Culpa de quem lhes dá cobertura como se fosse um dever feudal obrigatório e inquestionável. Lamentável atitude anglófona de alguns dos seus membros. Instalarem-se anos a fio no estrangeiro, tomá-lo como seu e não falarem uma única palavra na língua do país que os recebeu.

15 de abril de 2020

Jogos ilusórios do real e do imaginário

Giuseppe Arcimboldo

Testa reversibili com canestro di fruta (1590)
French & Company NY
Anjos-da-Guarda & Fadas-Madrinhas
Os cuidados intensivos dum hospital são um mundo à parte. Há sempre alguém disponível para nos dar aquele conforto necessário quando os momentos de maior ansiedade chegam. Também conheci alguns. Num deles, mereci a visita duma enfermeira. Sentou-se ao meu lado e encetámos uma longa conversa. Incentivou-me a confiar no meu anjo-da-guarda protetor, sempre pronto a velar por mim quando dele necessitasse. Ao confessar-lhe a minha descrença  no transcendente e nas religiões, avançou haver sempre algo a que nos prendêssemos e nos desse ânimo para superar as dificuldades. Concordámos ser a família uma óbvia solução para mentes agnósticas.

Os jogos do real e do imaginário trouxeram-me à memória a primeira noite que ali passara. Aquele em que vi deslizar até mim com passos de sílfide sem asas a minha filha, preparada para me prestar os cuidados noturnos. Julguei ouvi-la tratar-me por paizão logo mudado para senhor com frases enigmáticas proferidas na terceira pessoa. Estranhei, mas deixei-me embalar pela presença apaziguadora. Dormi tranquilo a sonhar com a minha fada-madrinha, a quem o tubo do ventilador me impedira de falar. Posteriormente percebi que tudo não passara duma ilusão ótica associada à audição de algumas palavras que o subconsciente queria ouvir. Partidas dos sentidos com sentidos ambíguos.

Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), o grande mestre do maneirismo italiano, é que era exímio na criação de imagens de percepção dupla, tal como representar uma cabeça reversível em cesto de frutas. A bata branca, o formato dos óculos, a cor do cabelo apanhado em rabo de  cavalo e a máscara cirúrgica ajudaram ao equívoco, semelhante aos efeitos pictóricos criados nas telas quinhentistas do criador milanês de cenários manipulados. Todos os rostos tapados são idênticos porque impessoais. Assim a jovem enfermeira desconhecida trouxe até mim a minha filha, tratando de mim como um verdadeiro anjo-da-guarda real sem qualquer vestígio duma ilusão imaginária.

11 de abril de 2020

Arthur, c'est moi !

Fogões, Pijamas & Livros...
Il y avait une pub à la télévision française qui affirmait de façon fort tranchée : Arthur c'est extra ! J'ai trouvé ça vachemente super. C'est-à-dire : formidable, magnifique, génial. Je dirais même plus, comme Dupond et Dupont, les détectives fictifs des Aventures de Tintin créés par Hergé : Arthur c'est extra ! En fait, ce n'était plus qu'une simple cuisinière Arthur Martin, très populaire dans l'Hexagone. Tant pis ! J'ai apprécié quand même le slogan.

Quando o Forum Algarve abriu portas, chamou-me a atenção uma loja chamada Arthur. Imitei a Loulou dos perfumes e disse para mim mesmo: Arthur, c'est moi ! Num internamento feito a contragosto no Hospital de Faro, levei comigo um pijama com o logótipo Arthur estampado um pouco por todo o lado. Alguém que não conhecia a marca perguntou-me se tinha sido mandado fazer por mim. Olhei-o surpreendido, sorri-lhe e não disse nada.   

I have never read a book by Mark Brown, nor Arthur's Nose (1976), nor any of those that followed it. I would like to meet Arthur Read on the original albums or on the translated tv serie version. I only know him very superficially and in passing. I just know that at the beginning of the stories, he had a very big nose. Then he started to hide his nose in the books and he got prescription glasses to read better. C'est pas mal ! Quer dizer: Not bad indeed!


6 de abril de 2020

O peso dos livros



Gosto de livros impressos a cheirar a tinta. É a ausência desse odor peculiar que me afasta das leituras virtuais associadas à república das letras poéticas. Prefiro reproduzir esses textos em fotocópias. Sempre se aproximam mais do ideal.

De máscara na cara, deitado ao comprido na cama e rodeado de tubos por todos os lados, a mobilidade para manejar leituras e escritas torna-se penosa. A sensação olfativa mantém-se mas o efeito produzido mudou-se para outras paragens remotas.

Tenho ao meu lado um romance e uma revista. Pego no primeiro e salto para a segunda. O peso dos livros depende das circunstâncias em que lhes tocamos. Num pós-operatório, a leveza da obra vai-se e o peso do volume fica. Coisas da gravidade.

3 de abril de 2020

Bailado em dias de confinamento

Florence Nightingale
(1820-1910)

H. Lenthal, c. 1850

Quero rua
Quando a Ministra da Saúde suspendeu as visitas aos doentes internados, encontrava-me nos cuidados intensivos do Hospital de Faro. No lado oposto da enfermaria, um politraumatizado repetia cadenciadamente: quero rua, quero rua, quero rua. O insucesso do pedido levou-o a mudar de ladainha: dor, dor, dor. Há certas ocasiões em que a realidade toma conta da consciência e faz dela gato-sapato.

As mulheres barbeiras
Um hospital é um universo em ponto pequeno. A par dos serviços tradicionais, aparecem outros que não deixam de nos surpreender. Fico-me com as mulheres barbeiras. Uma mais efusiva e brincalhona. Outra mais eficiente e discreta. Habituei-me ao tratamento de polé com material de segunda. Depois resolvi fornecer-lhes o meu mais adequado para a função e tudo mudou  radicalmente  de figura.

Galinha de campo
Um fisioterapeuta do CHUA perguntou-me certo altura se era da cidade ou do campo, se já tinha visto no verão alguma galinha na natureza. Apeteceu-me dizer que só nalguma gravura ou faiança do Bordalo. Contive-me. Afinal tudo estava centrado nas asas abertas da ave. Fiquei a saber que o fazem para facilitar a respiração. Aprendi e agora tento andar sempre com os braços bem afastados a ver o que dá.

Bailarinas flutuantes
Há umas bailarinas russas de Berezka que flutuam pelo palco como se não tivessem peso. Encontrei algo de similar por aqui. Enfermeiras que circulam pelos quartos como borboletas esvoaçantes dispensadas de tocar o chão que pisam. Ponho-me a imaginar a Florence Nightingale doutros tempos trajada à moda dos nossos e o efeito é surpreendente: touca branca na cabeça e socas superleves nos pés.