15 de abril de 2020

Jogos ilusórios do real e do imaginário

Giuseppe Arcimboldo

Testa reversibili com canestro di fruta (1590)
French & Company NY
Anjos-da-Guarda & Fadas-Madrinhas
Os cuidados intensivos dum hospital são um mundo à parte. Há sempre alguém disponível para nos dar aquele conforto necessário quando os momentos de maior ansiedade chegam. Também conheci alguns. Num deles, mereci a visita duma enfermeira. Sentou-se ao meu lado e encetámos uma longa conversa. Incentivou-me a confiar no meu anjo-da-guarda protetor, sempre pronto a velar por mim quando dele necessitasse. Ao confessar-lhe a minha descrença  no transcendente e nas religiões, avançou haver sempre algo a que nos prendêssemos e nos desse ânimo para superar as dificuldades. Concordámos ser a família uma óbvia solução para mentes agnósticas.

Os jogos do real e do imaginário trouxeram-me à memória a primeira noite que ali passara. Aquele em que vi deslizar até mim com passos de sílfide sem asas a minha filha, preparada para me prestar os cuidados noturnos. Julguei ouvi-la tratar-me por paizão logo mudado para senhor com frases enigmáticas proferidas na terceira pessoa. Estranhei, mas deixei-me embalar pela presença apaziguadora. Dormi tranquilo a sonhar com a minha fada-madrinha, a quem o tubo do ventilador me impedira de falar. Posteriormente percebi que tudo não passara duma ilusão ótica associada à audição de algumas palavras que o subconsciente queria ouvir. Partidas dos sentidos com sentidos ambíguos.

Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), o grande mestre do maneirismo italiano, é que era exímio na criação de imagens de percepção dupla, tal como representar uma cabeça reversível em cesto de frutas. A bata branca, o formato dos óculos, a cor do cabelo apanhado em rabo de  cavalo e a máscara cirúrgica ajudaram ao equívoco, semelhante aos efeitos pictóricos criados nas telas quinhentistas do criador milanês de cenários manipulados. Todos os rostos tapados são idênticos porque impessoais. Assim a jovem enfermeira desconhecida trouxe até mim a minha filha, tratando de mim como um verdadeiro anjo-da-guarda real sem qualquer vestígio duma ilusão imaginária.

18 comentários:

  1. Primeiro do que tudo, bom dia!
    Um belo texto em forma de divagação inspirado nos tempos infinitos de confinamento hospitalar.
    Continue a escrever para nós, seus leitores fiéis.

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  2. Olá Artur! Obrigada pela bela escrita. Nela consigo concentrar-me, coisa que não tenho tido paciência para fazer com um livro simples começado há já algum tempo. Por curiosidade (em saber de ti) tenho imenso gosto em ler o que escreves e consigo aconcentração que julgava desaparecida. Obrigada e um grande abraço (gosto de abraçar, mais que um beijinho)

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  3. Ainda bem que te aparece de vez em quando uma fada-madrinha a trazer-te conforto no ambiente hospitalar, que te inspire a redigir belos textos como este. Com os anjos-da-guarda familiares sempre presentes a apoiar-te neste confinamento, é bom saber que a inspiração também não te abandona, permitindo-te sublimar em palavras o desassossego destes dias.

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  4. Linda descrição das sensações de cambio subconsciente! Antológico, Artur! O texto, enriquecedor e inspirado como sempre. Feliz por vê-lo espiritualmente atento! Forte abraço! Melhoras!

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  5. Bom dia Artur. Que bom que é poder lê-lo... que descoberta feliz os seus textos e reflexões. Fique bom depressa.

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  6. Muito bem, Artur! Acordar de uma anestesia já experienciei e devo confessar que ter um anjo da guarda ao lado é uma doce sensação.

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  7. O imaginário quando estamos inconscientes "trabalha" e por vezes deixa vestígios quando a consciência acorda. O sentido da audição não dorme. Com ou sem confinamento que o dia traga rasgos de luz e esperança.

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  8. Maria da Conceição Andrade4 de maio de 2020 às 10:40

    Acredito em anjos-da-guarda, tenho todos os que amei (e amo) que de esferas celestes me continuam a proteger. Quem nos ama nunca nos abandona.

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  9. Lurdes Rufino Ferreira4 de maio de 2020 às 10:41

    Um belo texto amigo; em qualquer altura na vida a nossa mente leva- nos do imaginável ao real .

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  10. Acreditar! Lindo texto Artur. Continua a escrever o teu sentir, q aprecio muito. Abraço e saúde para ti.

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  11. Manuela Gama Vieira4 de maio de 2020 às 10:44

    Também acredito que todos temos anjos-da-guarda, independentemente das nossas crenças.
    Um grande abraço, Artur.
    Confie. Brevemente, tudo irá ficar bem.

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  12. Isabel Trüninger de Albuquerque4 de maio de 2020 às 10:46

    Bom Dia Artur, escrito às 04:59h. Acordas assim com este brilhantismo todo !! Um texto que traduz bem a neblina que paira sobre os CI independentemente de horas, dias ou noites...tudo é poroso fazendo recordar imagens de Noronha da Costa....as nossas defesas são inimagináveis, mágicas, quando como tu as sabemos trazer à vida, que tanto gostam de povoar...

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  13. Gostei muito do teu texto. As tuas melhoras rápidas�� Parabéns para quem cuida de ti nessa quarentena diferente e forçada e para todos os profissionais que nestes dias difíceis zelam por tanta gente.

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  14. Bom dia Artur! Parabéns pelo modo como está a viver este confinamento, envolto entre um mistério de vida, de esperança, de pessoas, que tal como tu, aguardam ir para o seio do Lar,da Família .
    Só,com um Anjo da Guarda pelo meio, há essa força ..... essas batas brancas, com uma palavra de confiança, de carinho,....digo mesmo ,de Amizade.Conserva esse humor, essa esperança, que em breve te levarão à tua Casa.

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  15. Liliana André Teles Palhinha4 de maio de 2020 às 10:51

    Gostei do texto ... e da sua resili~encia por onde também passa a aescrita. Abraço.

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  16. Gostei do texto ... e da sua resili~encia por onde também passa a aescrita. Abraço.

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  17. Teresa Chaby Calado4 de maio de 2020 às 10:53

    Bravo, Artur! Acreditando ou não nos anjos da guarda, o que é facto é que eles existem no nosso imaginário e metamorfoseiam-se para chegar até nós!
    Um grande beijinho de boa noite, amigão!

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  18. Silvia Schiermacher4 de maio de 2020 às 10:59

    No creo en "anjos da guarda", pero que los hay, los hay

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