«“How do you spell love in Alexandria?” - he said at last, softly. - “That is the question. Sleeplessness, loneliness, bonheur, chagrin... I do not want to harm or annoy her, but I feel that somehow, somewhere, she must need me as I need her.”»Lawrence Durrell, Mountolive (1958: x)
O encenador-romancista surpreende o público-leitor quando altera o registo discursivo ao abrir o terceiro ato d'O quarteto de Alexandria, dedicado agora a Mountolive (1958), o embaixador britânico no Egito que revive o seu amor de juventude com Leila, casada com Faltaus, patriarca dos Hosnani. Um novo-velho triângulo amoroso que o tempo de representação-leitura se encarregará de esclarecer-resolver. A subjetividade assumida de Darley é substituída pela objetividade possível duma voz off, de fundo ou de bastidores, a única capaz de reproduzir com verosimilhança e fidelidade os monólogos interiores dos atores-personagens e de transmitir os pensamentos mais íntimos de todos eles. A boca de cena conduz-nos o olhar para uma canoa de fundo chato que leva o ainda jovem secretário pelos canais salobros do Mariótis, o lago de águas turvas e plena de ilhotas franjadas de canaviais e vida selvagem. Está-se na época da caçada anual de aves e a ação vai começar, fora do ambiente inicial até aí seguido da ilha isolada do mar Egeu.
O protagonismo do até então narrador apaga-se quase por completo nas cenas iniciais do relato. Só volta a ser referido muito de raspão já a representação vai bastante adiantada, para reaparecer depois muito timidamente daí para a frente, como mero interveniente sem relevo especial no evoluir dos eventos revelados. O mesmo se pode dizer dalguns dos seus amigos mais chegados. O centro do interesse da efabulação transforma-os em meros figurantes, trocando-os amiúde por alguns outros do círculo de conhecimentos do novo herói da série, aquele que empresta o nome à terceira fase deste contínuo de palavras convocadas para um quase roman-fleuve, embora a instância autoral se negue a admiti-lo perentoriamente. Justine, Nissan e Narouz estão no fulcro de tudo e por razões até então desconhecidas: o pacto diabólico planeado pelo casal Hosnani e correligionários clandestinos da conspiração copta sobre a questão da Palestina, nas vésperas do grande conflito mundial que alteraria para sempre a relação periclitante entre as nações a nível local-global e estabeleceria uma outra ordem entre todas elas.
Já referi anteriormente o predomínio da descrição sobre a narração, na prodigiosa técnica do emissor externo nos transmitir a ilusão de estarmos a presenciar como testemunhas oculares aquilo que ele nos quer mostrar e pretensamente está a ver, a ouvir e a sentir. A sociedade multiétnica de Alexandria, os hábitos, crenças e línguas dos seus habitantes: turcos e judeus, árabes e coptas, sírios e arménios, italianos e gregos, franceses e ingleses, para além dos próprios egípcios. Faz-nos um retrato pormenorizado das águas castanhas do Nilo e das verdes do Mariótis, dos edifícios de tijolo cor de sangue de boi, dos comboios violeta rangendo na linha do horizonte, da miragem dos mirantes cor de pérola, da cidade luminosa de sombras esculpidas, da orla do deserto e da Grande Corniche. Com frequência, a entidade ficcional patenteia o seu conhecimento de tudo e de todos e transfere o seu papel de condutor do discurso aos atores participantes nas cenas em palco. Leva-os a revelar os seus segredos mais profundos, a produzir longas digressões, a dialogar uns com os outros sobre arte, literatura, filosofia, religião, magia, política, economia, geografia, história, diplomacia. Um sem-número de temas apresentados sob a forma de memórias, cartas, reflexões, cadernos, diários, romances ou de viva voz em animadas partilha de ideias.
A atuação de Sir David Mountolive está a chegar ao fim, momento ideal para trocar Alexandria pelo Cairo e depois zarpar rumo a outro país, a outros destinos, representar Sua Majestade Britânica junto de outros estados, em busca de outros deveres-razões-amizades diplomáticas. A anteceder esse quadro final do drama-romance, o encenador-fabulador ainda brinda o espetador-leitor com outros episódios laterais que pela riqueza dos recursos seguidos, com a sonoridade das palavras selecionadas, com os sentidos obscuros das frases proferidas, enriquecem o contínuo fluir da ficção e transformam esta parcela da trilogia inicial na mais sarcástica e demolidora de todas elas, desmistificadora dos carateres de uns e sublimadora de outros. A história surpreendente da reconstituição plástica da rapariga sem nariz, da profecia da cigana ao sapo ruivo ou da ironia trágica do assassinato do irmão errado, o funeral com que o pano desce sobre as tábuas da ribalta e as luzes da plateia se acendem.
Muitas histórias se entrecruzam neste enredo, enriquecido por acontecimentos históricos que ainda hoje muito marcam a atualidade política e, também, pelos sugeridos debates sobre as áreas mais sugestivas da cultura humana. Mais um magnífico texto pedagógico, Prof.!
ResponderEliminarem sido um prazer a companhia do Quarteto de Alexandria neste tempo complicado de confinamento(s)...
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