“I picture you, wise one, poring over Moeurs, the diaries of Justine, Nessim, etc., imagining that the truth is to be found in them. Wrong! Wrong! A diary is the last place to go if you wish to seek the truth about a person. Nobody dares to make the final confession to themselves on paper: or at least, not about love. Do you know whom Justine really loved? You believed it was yourself, did you not? Confess!”Lawrence Durrell, Balthazar (1958: I, i)
Deixaram de se ouvir as pancadinhas de Moliére para dar início ao segundo ato d'O quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell dedica-o a Balthazar (1958), nome do romance e do médico místico entendido nos princípios da Cabala, que empresta o seu ponto de vista sobre os factos ocorridos nesses anos 30 na capital de verão do Egito. Quando o pano de cena sobe e eu reabro o volume que trouxe duma livraria num intervalo de confinamentos forçados, reencontro o jovem narrador amante de Justine numa ilha isolada do mar Egeu, provavelmente grega, na companhia da filha de Melissa e Nessim. Saberemos na reta final do relato chamar-se Darley, sem direito para já a mais pormenores onomásticos. É aí nesse retiro privilegiado, que o exilado voluntário ou convalescente de paixões passadas e amores cruzados recebe a visita inesperada do amigo que dá o título ao livro e o ajuda a entender muitos dos enigmas em aberto e abre as portas a outros mais. Uma conversa rápida antes de prosseguir viagem para Esmirna, na Turquia, deixa-lhe o manuscrito comentado de Justine, qual palimpsesto coberto de notas quase ilegíveis, perguntas e respostas registadas à mão com cores diferentes ou mesmo datilografadas.
Os retratos pormenorizados de amantes, amigos e conhecidos, com maior ou menor relevo nas cenas representadas, são retocados ao mínimo pormenor com a mestria de quem descreve uma situação como se a estivesse a pintar. Tintas, tons, cores, matizes vernizes dispostos na paleta da escrita. O destino dos quatro elementos fulcrais da ação são apresentados com visões alternativas, onde lhes falta ainda uma definição satisfatória que os tomos seguintes da série talvez lhe dê. A partida de Justine para a Palestina e de Melissa para Jerusalém fica ainda por entender na sua totalidade. O mesmo se diga do aprendiz de amor, envolvido em relações traçadas de forma poligonal de resultados tão devastadores. A longa analepse registada em forma de memorial não datado e acrónico, entendida como uma muito completa recuperação/reparação de subjetividades narrativas debitadas ou de regresso/restituição de verdades parce-larmente reveladas, ajuda a esguardar com uma atenção redobrada tanto as linhas-mestras de comportamento do quarteto protagonista como da própria Alexandria, a capital da memória por excelência.
A transferência de perspetiva de Darley para os demais testemunhos coligidos por Balthazar chega a dar-nos a sensação de ter atingido um conhecimento perfeito dos factos sem atingir a omnisciência ideal. Mas as falas transcritas pelo relator à distância são tão subjetivas como as atualizadas pelo corretor de serviço. Serão sempre meras in-terpretações duma multidão de vozes de primeira pessoa a imitarem uma terceira de duvidosa fiabilidade, porque proferidas também elas por personagens a todos os títulos convencionais. As verdades do mundo real e da imaginação obedecem todas aos princípios rígidos da relatividade restrita ou alargada. As informações fornecidas em segunda mão pelo confidente e revisor do caderno de notas, que nos é dado a conhecer em formato impresso, transforma-se aos poucos numa história curiosa contada por camadas sucessivas, constituindo uma série de relatos irmãos feitos de painéis rolantes e em tempos diferentes. Essa a técnica de Pursewarden, um dos escritores com algum destaque na ficção, acaba por ser seguida por Lawrence Durrell na tentativa de fugir à ordem sequencial do romance canonizado e temporalmente saturado dos seus dias.
O público imaginário deste drama em quatro atos já se move na plateia. Um novo intervalo avizinha-se. Agora que as festas cristãs coptas de Sitna Mariana já chegaram ao fim e as máscaras com sentido trágico já descobriram os rostos encobertos, agora que nos é revelado uma nova disposição quadrangular dos desencontros amorosos de Justine com Nessim, Persewarden e Clea, agora que se complicou a comédia essencial das relações humanas, é tempo de desentorpecer as pernas por um instante e ganhar fôlego para novas revelações que se adivinham quando as tais pancadinhas de Molière se voltarem a escutar, as luzes se apagarem e o pano de cena de novo subir. O ambiente já está preparado na folha de sala que tenho entre mãos para contemplar as imagens refletidas neste espelho multifacetado, feito de histórias contadas e recontadas, deste prisma feito de palavras desenhadas como se de cristal de vidro fino e brilhante se tratasse.
Uma sequência muito interessante no palco das paixões humanas, Prof., que, decorrendo no fascínio dos países de história milenar, mais atrativa se torna...
ResponderEliminarstou fascinado com a leitura, que me ocupou todo o mês de janeiro e já me está a ocupar o de fevereiro. Acabei o terceiro ato um pouco diferente doas anteriores e já comecei com o quarto e último. Vou lendo aos pedacinhos, nos intervalos de outras ocupações que conheces e me fazem sair de casa, e só começo a lamentar o facto de já estar a chegar ao fim. Felizmente, o Lawrence Durrell deixou-nos algumas outras sagas de herança. Assim as livrarias voltem a estar abertas...
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