1 de fevereiro de 2021

Lawrence Durrell, Balthazar: o segundo ato do Quarteto de Alexandria

“I picture you, wise one, poring over Moeurs, the diaries of Justine, Nessim, etc., imagining that the truth is to be found in them. Wrong! Wrong! A diary is the last place to go if you wish to seek the truth about a person. Nobody dares to make the final confession to themselves on paper: or at least, not about love. Do you know whom Justine really loved? You believed it was yourself, did you not? Confess!”
Lawrence Durrell, Balthazar (1958: I, i)

Deixaram de se ouvir as pancadinhas de Moliére para dar início ao segundo ato d'O quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell dedica-o a Balthazar (1958), nome do romance e do médico místico entendido nos princípios da Cabala, que empresta o seu ponto de vista sobre os factos ocorridos nesses anos 30 na capital de verão do Egito. Quando o pano de cena sobe e eu reabro o volume que trouxe duma livraria num intervalo de confinamentos forçados, reencontro o jovem narrador amante de Justine numa ilha isolada do mar Egeu, provavelmente grega, na companhia da filha de Melissa e Nessim. Saberemos na reta final do relato chamar-se Darley, sem direito para já a mais pormenores onomásticos. É aí nesse retiro privilegiado, que o exilado voluntário ou convalescente de paixões passadas e amores cruzados recebe a visita inesperada do amigo que o título ao livro e o ajuda a entender muitos dos enigmas em aberto e abre as portas a outros mais. Uma conversa rápida antes de prosseguir viagem para Esmirna, na Turquia, deixa-lhe o manuscrito comentado de Justine, qual palimpsesto coberto de notas quase ilegíveis, perguntas e respostas registadas à mão com cores diferentes ou mesmo datilografadas.

Os retratos pormenorizados de amantes, amigos e conhecidos, com maior ou menor relevo nas cenas representadas, são retocados ao mínimo pormenor com a mestria de quem descreve uma situação como se a estivesse a pintar. Tintas, tons, cores, matizes vernizes dispostos na paleta da escrita. O destino dos quatro elementos fulcrais da ação são apresentados com visões alternativas, onde lhes falta ainda uma definição satisfatória que os tomos seguintes da série talvez lhe . A partida de Justine para a Palestina e de Melissa para Jerusalém fica ainda por entender na sua totalidade. O mesmo se diga do aprendiz de amor, envolvido em relações traçadas de forma poligonal de resultados tão devastadores. A longa analepse registada em forma de memorial não datado e acrónico, entendida como uma muito completa recuperação/reparação de subjetividades narrativas debitadas ou de regresso/restituição de verdades parce-larmente reveladas, ajuda a esguardar com uma atenção redobrada tanto as linhas-mestras de comportamento do quarteto protagonista como da própria Alexandria, a capital da memória por excelência.

A transferência de perspetiva de Darley para os demais testemunhos coligidos por Balthazar chega a dar-nos a sensação de ter atingido um conhecimento perfeito dos factos sem atingir a omnisciência ideal. Mas as falas transcritas pelo relator à distância são tão subjetivas como as atualizadas pelo corretor de serviço. Serão sempre meras in-terpretações duma multidão de vozes de primeira pessoa a imitarem uma terceira de duvidosa fiabilidade, porque proferidas também elas por personagens a todos os títulos convencionais. As verdades do mundo real e da imaginação obedecem todas aos princípios rígidos da relatividade restrita ou alargada. As informações fornecidas em segunda mão pelo confidente e revisor do caderno de notas, que nos é dado a conhecer em formato impresso, transforma-se aos poucos numa história curiosa contada por camadas sucessivas, constituindo uma série de relatos irmãos feitos de painéis rolantes e em tempos diferentes. Essa a técnica de Pursewarden, um dos escritores com algum destaque na ficção, acaba por ser seguida por Lawrence Durrell na tentativa de fugir à ordem sequencial do romance canonizado e temporalmente saturado dos seus dias.

O público imaginário deste drama em quatro atos já se move na plateia. Um novo intervalo avizinha-se. Agora que as festas cristãs coptas de Sitna Mariana já chegaram ao fim e as máscaras com sentido trágico já descobriram os rostos encobertos, agora que nos é revelado uma nova disposição quadrangular dos desencontros amorosos de Justine com Nessim, Persewarden e Clea, agora que se complicou a comédia essencial das relações humanas, é tempo de desentorpecer as pernas por um instante e ganhar fôlego para novas revelações que se adivinham quando as tais pancadinhas de Molière se voltarem a escutar, as luzes se apagarem e o pano de cena de novo subir. O ambiente está preparado na folha de sala que tenho entre mãos para contemplar as imagens refletidas neste espelho multifacetado, feito de histórias contadas e recontadas, deste prisma feito de palavras desenhadas como se de cristal de vidro fino e brilhante se tratasse. 

2 comentários:

  1. Uma sequência muito interessante no palco das paixões humanas, Prof., que, decorrendo no fascínio dos países de história milenar, mais atrativa se torna...

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    1. stou fascinado com a leitura, que me ocupou todo o mês de janeiro e já me está a ocupar o de fevereiro. Acabei o terceiro ato um pouco diferente doas anteriores e já comecei com o quarto e último. Vou lendo aos pedacinhos, nos intervalos de outras ocupações que conheces e me fazem sair de casa, e só começo a lamentar o facto de já estar a chegar ao fim. Felizmente, o Lawrence Durrell deixou-nos algumas outras sagas de herança. Assim as livrarias voltem a estar abertas...

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