7 de dezembro de 2018

A Estremadura e os lugares de memória

PROVÍNCIA DA ESTREMADURA
João Silvério Carpinetti

[Lisboa: BNP (1762)]
... lieu de la mémoire
«As ruas, as praças calcorreadas pelas mulheres, crianças e homens europeus são cem vezes mais designadas segundo estadistas, figuras militares, poetas, artistas, compositores, cientistas e filósofos. [...] O menino da escola e os homens e mulheres urbanos da Europa habitam verdadeiras câmaras de ressonância de feitos históricos, intelectuais, artísticos e científicos. [...] Nos Estados Unidos tais memoranda são escassos. As ruas são interminavelmente nomeadas como “Pine”, “Maple”, “Oak” ou “Willow”. As grandes avenidas chamam-se “Sunset”, a mais nobre das ruas de Boston é conhecida como “Beacon”. [...] As avenidas, calçadas e ruas americanas são simplesmente numeradas ou conhecidas pela sua orientação, como em Washington, sendo o número seguido de “North” ou “West”. Os automóveis não têm tempo de considerar uma rue Nerval ou um largo Copernicus.»
George Steiner, A ideia de Europa (Lisboa: Gradiva, 2005, 32-33)
A Estremadura dividiu nos tempos da Reconquista Cristã (718-1492) o Norte cristão, clerical, guerreiro e rural, do Sul árabe ou moçárabe e urbano. Situava-se para além da margem meridional do Douro e ia até ao vale do Sado. Funcionava como uma terra de transição e de conflito latente, a linha fronteiriça ou raiana entre duas culturas e civilizações distintas, a baliza flutuante ou estrema dos territórios recuperadas pela Cristandade à Moirama. Era a marca divisória entre o Condado Portucalense e o al-Gharb al-'Andalus.

As vitórias da Cruzada hispânica sobre o Crescente muçulmano foram alterando os limites das duas forças inimigas em contenda. O Reino de Portugal estendeu-se até ao Reino do Algarve, confinado à vertente setentrional da serra do Caldeirão, logo conquistado e anexado (1249). As províncias históricas viram ajustados os seus termos ao longo dos tempos, até desaparecerem como entidades administrativas atuais. A sua presença multissecular permaneceu todavia viva na memória coletiva das suas gentes.

Algarvios e Alentejanos, Beirões e Transmontanos, Ribatejanos e Minhotos fizeram tábua rasa das NUTS, GAM, ComIurb e ComInter, siglas pouco apelativas para identificar as suas raízes matriciais. Os Estremenhos, em contracorrente, riscaram o seu passado histórico e renderam-se ao bussolar. Olharam fixamente para a rosa-dos-ventos e reclamaram-se convictamente do Oeste. O lugar da memória/olvido surge-nos de quando em vez com estes laivos peregrinos. De costas voltadas para a Europa. De braços abertos para a América.

Lucas Janszoon Waghenaer
Gedaente en vodoeninge vant Landt van Portugal (1584)

3 comentários:

  1. A memória coletiva é um património inestimável. Não seria Lisboa a capital que é se em cada rua ou largo não estivessem inscritos os nomes dos famosos pares que celebram a história do país. Uma cidade estremenha que marca pela sua excelência!

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  2. Lisboa, cabeça da Estremadura e ponto de encontro de todas as regiões históricas-naturais do país, nunca quis ter um estatuto de província, mas como capital, justifica-se em parte que assim fosse. Macrocéfala transformou-se numa grande metrópole à dimensão nacional. Felizmente que lá foi mantendo fiel a essa tradição europeia de preservar a memória coletiva, referida por George Steiner, nas suas praças, ruas e avenidas. Que assim se mantenha para sempre...

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  3. Nem por acaso, estou a ler A cidade de Ulisses, de Teolinda Gersão, estou agradavelmente surpreendida. Ulisses que nunca existiu fisicamente, apenas um mito mil vezes escrito. Leio sobre a história de uma capital de província que cedo se transformou na capital de um pequeno país, cuja fundação data de 1143, mas com as mesmas fronteiras desde 1297!

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