19 de abril de 2021

Mario Vargas Llosa, histórias de Canudos, uma guerra do fim do mundo

 

«Es más fácil imaginar la muerte de una persona que la de cien o mil –murmuró el barón. Multiplicado, el sufrimiento se vuelve abstracto. No es fácil conmo-verse por cosas abstracta.»

Passadas três décadas e meio de relativo silêncio, voltei a abrir o grosso volume com que Mario Vargas Llosa relatou A guerra do fim do mundo (1981). Não se trata duma releitura completa do romance que na altura deixei a menos de metade das suas quase sete centenas de páginas. Vá-se lá saber porquê. Provavelmente porque o fascínio que tinha sentido com A tia Júlia e o escrevedor se não voltou a repetir nesta recriação histórico-ficcionada da Campanha de Canudos (1896-1897). Esse abandono tácito não me impediu de voltar à companhia do já então Prémio Príncipe das Astúrias (1986) e futuro Prémio Nobel da Literatura (2010), primeiro com os textos mais recentes, depois com os mais antigos. Ganhei gosto pela escrita do criador peruano-espanhol pelo que resolvi resgatar o livro ostracizado da estante onde repousava tranquilamente no meio de muitos outros com um currículo algo distinto. Tenho-me deliciado com a sua presença diária com que me tem ajudado a preencher estes tempos conturbados de confinamentos forçados com maior ou menor rigor à escala global.

Ao invés de considerar esta contenda num finisterra sem vivalma em redor, como pode chegar a sugerir uma leitura ingénua ou superficial do título, a ação que a anima se localiza numa zona perfeitamente visível no mapa do Brasil, ou que represente minimamente o estado da Baía. Nem longe nem perto doutros cenários possíveis para representar um drama humano com a dimensão e caraterísticas deste episódio do historial recente do maior país da América do Sul. A noção de distância ou afastamento depende naturalmente da esfericidade da terra e do local de observação dos factos narrados. Nas vésperas da viragem de século, os receios apocalípticos dum final caótico dos tempos marcaram aquela comunidade sertaneja hiperconservadora, temerosa da vinda do anticristo, materializada na queda do regime monárquico de Dom Pedro II (1889) e na assunção do regime republicano, presidido à época por Prudente de Morais (1894-1898). Os ideais orientadores da rebelião restauracionista daqueles resistentes à opressão latifundiária e fumadores habituais de canudos-de-pito, motivam-nos para travar uma pugna sem quartel entre justos e pecadores, materializada na recusa em aceitar a separação da Igreja e do Estado, no derrube do imperador, no casamento civil, no sistema métrico decimal, ou na resposta às perguntas do recenseamento. A crença secular da Terceira Idade do Mundo e na vinda dum Dom Sebastião salvador estão ainda muito arreigada nestas gentes e, por conseguinte, condenadas ao mais profundo fracasso.

A história romanceada da guerra do fim do mundo está repartida por quatro partes ou etapas de extensão desigual, tantas quantas as expedições que o exército brasileiro necessitou de organizar para levar de vencida a resistência dos revoltados do vilarejo amotinado. Depois dum bando mal-armado e famélico de desempregados crónicos, camponeses pobres vítimas das secas cíclicas daquelas terras agrestes de latifúndio, desse punhado sertanejo de índios nativos e escravos recém-libertos ter derrotado o tenente Manuel da Silva Pires Ferreira em Uauá (novembro de 1896), do Major Febrónio de Brito em Tabuleirinho (janeiro de 1897) e do Coronel Moreira César no próprio arraial de Canudos (março de 1897), acabaram por ser totalmente dizimados pelas forças federadas do General Artur Óscar (setembro de 1897), que arrasaram o arraial e massacraram cerca de 20 000 dos 25 000 habitantes do vilarejo nordestino, rebatizado de Belo Monte.

Lidos e relidos os diversos incidentes do livro que nos põe a par dum conflito sangrento de ajuste de contas, travado a ferro e fogo entre um duplo fanatismo de sinal oposto: o dos seguidores monárquicos e sebastianistas de António Conselheiro e o dos seguidores da velha república das oligarquias e herdeira direta da primitiva república da espada. Passo a passo, parágrafo a parágrafo, lance a lance, os incidentes registados nesse período de onze meses, os acontecidos e os imaginados, vão-nos dando conta desses tempos conturbados protagonizados em Terras de Vera Cruz por cangaceiros, jagunços, coiteiros, cabras, pisteiros, romeiros ou peregrinos cafuzos, caboclos, mestiços, cabrochas, mulatos, novos e velhos de todas as idades, em oposição a coronéis, capangas, caciques, malvados, ricos, egoístas, poderosos, promotores da injustiça, do abuso e da exploração. Os destinos individuais e coletivos vão-se traçando ao sabor dos vários agentes narrativos e dialogantes, a par dos demais testemunhos que os cronistas se encarregaram de preservar. Assim procedeu Euclides da Cunha, nas páginas d'Os sertões (1902), assim procedeu Sérgio Rezende nos fotogramas da Guerra de Canudos (1997). Assim procedeu também Mario Vargas Llosa neste romance, a demonstrar que a prosa recreativa gizada com engenho e arte pode prestar um serviço inestimável de preservação em prol da memória intemporal dos povos. Os destinos anónimos a darem corpo e alma aos destinos públicos registados nos anais oficiais dos vencedores.  

2 comentários:

  1. Mais um belíssimo texto, Prof! Um autor que nunca me cansa, com as suas histórias mágicas sempre bem estruturadas e bem contadas. Li este título em Junho de 2016, chegado às mãos através da coleção Livros RTP (ainda há boas iniciativas!). Lembro-me do calafrio causado por certas descrições, em que pensava como o fanatismo, seja ele de que inspiração for, pode conduzir a situações caóticas, de "fim do mundo". O ser humano é na realidade um misto de equilíbrio e caos...

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  2. Gostei de recordar uma leitura com mais de 25 anos, foi, aliás, a porta de entrada para o universo de Mário Vargas Llosa.
    Muito bom.

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