Ulysses and the Sirens John William Waterhouse (1891) |
Σειρῆνας μὲν πρῶτον ἀφίξεαι, αἵ ῥά τε πάνταςἀνθρώπους θέλγουσιν, ὅτις σφεας εἰσαφίκηται.ὅς τις ἀιδρείῃ πελάσῃ καὶ φθόγγον ἀκούσῃΣειρήνων, τῷ δ᾽ οὔ τι γυνὴ καὶ νήπια τέκναοἴκαδε νοστήσαντι παρίσταται οὐδὲ γάνυνται,ἀλλά τε Σειρῆνες λιγυρῇ θέλγουσιν ἀοιδῇἥμεναι ἐν λειμῶνι, πολὺς δ᾽ ἀμφ᾽ ὀστεόφιν θὶςἀνδρῶν πυθομένων, περὶ δὲ ῥινοὶ μινύθουσι.ἀλλὰ παρεξελάαν, ἐπὶ δ᾽ οὔατ᾽ ἀλεῖψαι ἑταίρωνκηρὸν δεψήσας μελιηδέα, μή τις ἀκούσῃτῶν ἄλλων: ἀτὰρ αὐτὸς ἀκουέμεν αἴ κ᾽ ἐθέλῃσθα,δησάντων σ᾽ ἐν νηὶ θοῇ χεῖράς τε πόδας τεὀρθὸν ἐν ἱστοπέδῃ, ἐκ δ᾽ αὐτοῦ πείρατ᾽ ἀνήφθω,ὄφρα κε τερπόμενος ὄπ᾽ ἀκούσῃς Σειρήνοιιν.εἰ δέ κε λίσσηαι ἑτάρους λῦσαί τε κελεύῃς,οἱ δέ σ᾽ ἔτι πλεόνεσσι τότ᾽ ἐν δεσμοῖσι διδέντων.Ὅμηρος, Οδύσσεια (Ⅻ, 39-54)
O canto das sereias
As Sereias (Σειρήνες = «atar com uma corda», «secar») são seres quiméricos criados pelo imaginário primitivo e eternizados pela veia épica grega de Homero na Odisseia, bizantina de Apolónio de Rodes nos Argonautas e romana de Ovídio nas Metamorfoses. Estes entes híbridos verbalizados na origem dos tempos com palavras transmitidas de boca em boca, serão depois convertidos em mitos, lendas e contos, desenhados em vasos de terracota, talhadas em pedra e bronze, pintados em tela, registados em filme e de novo moldados em palavras ditas, cantadas e lidas em todas as línguas delineadas pela criatividade humana ao longo do devir histórico que atravessou séculos e milénios até chegar aos nossos dias.
Os relatos da Antiguidade dizem que Ulisses resistira ao Canto das Sereias fazendo-se atar ao mastro central do navio e que Orfeu já as vencera com o som harmónico da sua voz e da lira por si dedilhada. Filhas aladas do rio Achelous e da musa Terpsícore, viviam junto aos rochedos aguçados das águas revoltas do Mediterrâneo. Segundo os mitos que se foram tecendo, tinham o dom de atrair os nautas que as viam e ouviam as melodias que entoavam. Segundo os contramitos, as mulheres-aves helénicas pairavam sobre a tona agitada do mar, tal como a espuma formada pelo rebentamento das ondas contra as costas escarpas que as acolhiam e pelos ventos uivantes que as impeliam. O ruído gerado seria então o fruto do seu canto fatal.
O fabulário medievo ajustou a relação das sereias pré-olímpicas com o meio aquático em que planavam e põe-nas a nadar depois de as converter em genuínas mulheres-peixes pós-clássicas. Em Varsóvia, a lenda ideou uma sereia lutadora, com uma espada numa mão e um escudo na outra. Em Copenhaga, a Sereiazinha de Andersen fita, com olhar sonhador desde as margens do Báltico, a cidade que a adotou como símbolo perene. Duas estátuas erigidas nos pontos fulcrais de duas capitais europeias, a lembrarem os feitos atribuídos a duas criaturas irreais, a pautarem os universos fabulosos da dimensão humana com ânsias incontidas de fugirem à prisão do imanente e de atingirem a ilusão escorregadia do transcendente perene.
Sereias de Copenhaga e de Varsóvia |
Nos dias da pós-modernidade, os navegadores de águas tangíveis deixaram de ser as únicas presas do canto das sereias. O digital apanhou na sua rede todos os navegadores virtuais à escala global. Surgem-nos agora sem penas nem escamas, sem asas nem cauda, sem barbatanas nem patas de pato, mas bem mais perigosas do que as mediterrânicas ou bálticas suas antecessoras. Tornaram-se reais, seres providencias de carne e osso, capazes de enfeitiçar o argonauta mais atento. Substituíram as melopeias marítimas pelo discurso de ação especialmente apto para atrair os incautos às armadilhas por si engatilhadas. Em tempos eleitorais, cuidado com elas. Não há estratégia odisseica que as possa travar ou calar.
Às Sereias chegarás em primeiro lugar, que todos | os homens enfeitiçam, que delas se aproximam. | Quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias | ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos | estarão para se regozijarem com o seu regresso; | mas as Sereias o enfeitiçam com seu límpido canto, | sentados num prado, e à sua volta estão amontoadas | ossadas de homens decompostos e suas peles marcescentes, Prossegue caminho, pondo nos ouvidos dos companheiros | cera doce, para que nenhum deles as oiça. | Mas se tu próprio quiseres ouvir o canto, | deixa que, nau veloz, te amarrem as mãos e os pés | enquanto estás de pé contra o mastro; e que as cordas sejam atadas ao mastro, para que te possas deleitar com a voz | das duas Sereias. E se a eles te ordenares que te libertem, | então que te amarrem com mais cordas ainda.
Homero, Odisseia. Lisboa: Livros Cotovia, 2003
[Trad. Frederico Lourenço, Ⅻ, 39-54, p. 200]