4 de maio de 2022

Tiago Feijó, doze dias e doze noites entre o sonho e a realidade

«Sim, pode, é claro que António pode fazer isso pelo pai. Pode, mas não quer. Aliás, neste instante, ele cogita que não queria sequer ter atendido àquele telefo-nema, não queria ter ouvido à distância a voz de Silvio Rodríguez chamando, não queria nem mesmo ter acordado para este dia que se alargará em muitos, um dia encavalado numa dúzia de dias, doze noites transcorridas como que dentro de um único e enormíssimo dia.»

Nasce-se e morre-se hoje em dia num hospital. Entre o alfa e o ómega da nossa realidade existencial, por ali transitamos repetidas vezes ao longo da nossa viagem pela vida. Raras são as exceções arroladas. Ficamos horas, semanas, meses, anos a fio. Voltamos sempre que necessário. Quer queiramos quer não. Depois as entradas sem saída. As definitivas. Assim o relato confiado por Tiago Feijó às duas centenas e picos de páginas virtuais-físicas dos Doze dias (2021), o último romance inédito a receber o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes, atribuído pela Câmara Municipal de Portimão a autores da lusofonia. Li-o dum fôlego num período de calma absoluta e deixei-o respirar um pouco para um repouso merecido. Comecei a delinear estas notas numa enfermaria de hospital. Passagem rápida de quem não se quer demorar muito num local indesejado e que já começa a conhecer muito bem. Muito mais do que desejaria. Até ao momento, tenho-o deixado sempre pelos meus próprios pés, o que não é nada mau. Prossegui e conclui a reflexão de novo em liberdade e resolvido a mantê-la inviolável num futuro a perder de vista no horizonte. Esta curta estada serviu-me para conferir alguns dos tópicos referidos no texto recentemente distinguido pela edilidade algarvia.

O júri que a premiou assinala no prefácio por si assinado tratar-se duma estrutura narrativa complexa e original, exigindo a atenção redobrada a quem a lê, permitindo-lhe assim usufruir cabalmente da profundidade e beleza nela contida. Palavras avisadas de quem acedeu às histórias de vida ali contadas em primeiríssima mão. A formação clássica do autor podê-lo-á ter levado a trilhar percursos previamente traçados pelo mundo grego, o grande fundador da literatura ocidental que hoje nos rege. Nada de condenável, por conseguinte, o ter iniciado o relado in medias res, à boa maneira das epopeias antigas de Homero e Virgílio ou das mais recentes de Dante e Camões. É verdade que este modo versificado de efabular eventos acontecidos ou fantasiados tenha caído entretanto em desuso, não impedindo, todavia, os criadores dos heróis da imaginação de os ter transferido para a prosa poética dos romances atuais, o género por excelência de desenhar imagens com palavras, onde a faculdade de começar pelo meio-princípio/fim diegético é total, a ponto de ter tomado de assalto as estantes das livrarias e de ter ganho a pulso a preferência dos leitores de todas as idades.

Mais do que a descrição exaustiva dos feitos heroicos duma figura insigne conhecida de todos, assistimos, nesta rapsódia memorialista de avanços/recuos constantes, ao drama representado por dois seres anónimos ligados pelos laços familiares. Um filho que acompanha o pai nos derradeiros doze dias dos seu percurso existencial. Tantos quantos os meses do ano, tantos quanto as horas solares do dia. Cabalas numéricas ocasionais/intencionais para assim destacar a unidade/diversidade dum ciclo vital preciso. O narrador-plateia, qual corifeu das tragédias-comédias áticas, toma conta do discurso e desnuda o ser mais íntimo dos atores em cena naquele cenário de hospital duma cidadezinha interiorana do estado brasileiro de São Paulo. Fá-lo num nós majestático e com grande economia de meios espácio-temporais e de ação. A tal unidade aristotélica propícia à catarse purificadora final, ao apaziguamento total dos protagonistas, ao apagamento de recordações recalcadas, trazidas do passado, a assombrar o presente e a comprometer o porvir.

A crónica diarística lembrada/falada-revelada ao sabor da corrente do pensamento inicia-se numa terça-feira (dia de Marte, o deus romano da guerra) e termina num sábado (dia do repouso de Jeová, o deus hebraico da criação). De 15 a 27 de dezembro de 2015, são resumidos os instantes mais marcantes da caminhada acidentada dum grupo familiar restrito. Desavinda no início da resenha, reconciliada no final. O poder libertador da palavra a obter o desidério maior que a encerra e lhe sentido. O avô terá findado o seu ciclo existencial no dia/noite de Natal. Levou consigo a imagem do neto de colo, o olhar pacificado das mulheres da sua vida, a presença dos filhos irmanados entre si. O nascer-viver-morrer-renascer simbólico cumprira-se totalmente. O sonho-realidade fundidos num todo único e indivisível que constitui a própria essência humana. Os doze dias postos a nu no relato começam a ser revelados já os atos evocados iam a meio, talvez por ter sido aquele em que o filho chorou pela primeira vez o estado debilitado do pai. Conclui vinte e quatro capítulos depois, tantos quantos os cantos contidos na Ilíada e na Odisseia homéricas, no preciso momento em que o reencontro dos dois protagonistas do drama-romance inicia o sua caminhada imparável de pacificação e começa a projetar-se decididamente até onde a vista alcança. Os extremos tocam-se. O segredo está em saber encontrá-los.

3 comentários:

  1. Belo texto, Prof., sobre um tema que nos toca a todos. Os meus familiares têm sido exceção, falecendo em casa depois de sofrerem dores que no hospital poderiam ter sido melhor atenuadas... É o preço a pagar por se viver em grandes áreas urbanas e de não ter a carteira bem recheada para um hospital privado, pelos vistos. Assistindo impotentes à sua debilidade e degradação, toda a reconciliação necessária tem lugar... uma das qualidades do ser humano que felizmente ainda não se perdeu.

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    1. Nasci no hospital onde anos depois o meu avô morreria. O tal α & ω de que é composta a vida e a limita nos seus extremos…

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  2. Artur, gostei muito do texto.
    É muito realista!

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