« C’était l’époque où les tournées théâtrales ne parcouraient pas seulement la France, la Suisse et la Belgique, mais aussi l’Afrique du Nord. J’avais dix ans. Ma mère était partie jouer une pièce en tournée et nous habitions, mon frère et moi, chez des amies à elle, dans un village des environs de Paris. »Patrick Modiano, Remise de peine (1988)
Lidos os livros mais antigos de Patrick Modiano, comecei a construir a ideia de cada um deles se comportar como uma sucessão ininterrupta de fragmentos pertencentes a uma única história, sempre curtos e inconclusivos. Estaria repartida por uma multiplicidade de intérpretes, como se se tratasse dum imenso roman fleuve, cuja nascente se vai dando a conhecer paulatinamente, a engrossar como pode o caudal e a remetê-lo para uma foz bastante distante que com paciência talvez se deixe avistar e tocar. Esta sensação de déjà vu não me impede, todavia, de regressar ciclicamente à sua companhia. A comprovada técnica de escrita do Prémio Nobel da Literatura 2014 sobrepõe-se sempre ao universo temático algo repetitivo detetado. Comecei com essa dúvida quando retomei o volume de romances, publicado pela Quarto-Gallimard, e me atirei à Remissão da pena (1988), cujo título, só por si, me levava a comprovar a suspeita já referida. Cada vez me convenço mais de ter acertado nessa suspeita.
O caráter autobiográfico confiado ao leitor é claro desde as linhas iniciais do relato. Esta afirmação não encerra em si uma mera suspeita difícil de descartar. É recorrente em anteriores incursões do criador gaulês pelas esteiras da escrita. As evidências trazidas para a ficção são sempre copiosas e contínuas. O eu efabulador assumido pela instância discursiva encarrega-se de reiterar essa linha de fusão perene do real e do imaginário. Patrick Modiano, na papel de autor do livro, refugia-se no testigo ingénuo do jovem Pastoche-Patrick, o narrador-protagonista revelado. Fá-lo ao sabor da pena e do elã do momento, nas sete dezenas de páginas impressas que dão corpo aos fragmentos memorialistas ali arrolados, vividos/recriados numa infância-juventude distante e à espera duma remissão/alivio total das penas/provações obscuras por si sentidas quando rondava os dez anos de idade.
A dar fé nos indícios facultados neste conto longo ou novela breve disfarçada de romance ‒ etiquetas tradicionais irrelevantes para a decifração de cada um dos episódios elencados ‒, o núcleo central da autoficção retrospetiva situa-se num pós-guerra não muito distante de meados da década de 50. O cruzamento de eventos factuais com os factíveis permite-nos apontar com alguma margem de segurança para os anos que se seguiram à publicação do Touchez pas au grisbi (1953), um roman série noire de Albert Simonin, oferecido ao jovem memorialista por um dos memoráveis destacado. Os dados familiares dispersos do relator-relatado, o interno e o externo, bem como as relações duns e doutros com os demais residentes-visitas daquela casa térrea das proximidades de Paris onde só viviam mulheres e os pais primavam pela ausência, a coincidência de nomes, atividades e relacionamentos de todos eles, ajudam a traçar o décor cénico evocado e a encaixar todas as peças soltas dum puzzle habilmente concebido.
O poder exercido pelo imaginário infantil é ilimitado. A capacidade de criar mundos alternativos é imutável. Os mecanismos postos à sua disposição para explicar o mundo envolvente são imediatos. O narrador Patrick não se cansa de recordar as confabulações tecidas por Pastoche de reduzir o cabaret Le Carroll's da sensual Frede a um idílico circo de lona branca listada de vermelho, de fantasiar as mais mirabolantes aventuras noturnas no castelo abandonado do Marquis de Caussade e Roi de l'Armagnac ou de avistar no jardim da casa com fachada de hera onde então vivia o fantasma do docteur Guillotin a surgir por entre as clematites do túmulo ali existente. No espírito do narrador-autor adulto ficaram gravadas algumas frases ouvidas em criança. Consigo quedaram certos objetos de ilusória vulgaridade mas de crucial valor para içar parte do véu envolvente dos eventos revividos sem todavia os revelar na sua totalidade. Assim funciona a literatura na sua busca dos tempos perdidos/recuperados, feita à maneira de Proust mas com um número incomensurável menor de palavras. Com uma mão revela, com a outra esconde e com as duas sugere. Sem nunca se comprometer. Essa tarefa que fique ao cuidado do livre arbítrio dos leitores se para aí estiverem voltados.
Mais um belo e apelativo texto, de um autor de quem só li "Tinta simpática".
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