26 de dezembro de 2022

Paulina Chiziane, uma história de poligamia e de niketche

«‒ Diz-me, espelho meu: serei eu feia? Serei eu mais azeda que a laranja-lima? Por que é que o meu marido procura outra e me deixa aqui? O que é que as outras têm que eu não tenho?»
Paulina Chiziane, Niketche ‒ Uma história de poligamia (2002)

Todos os anos os mass media tecem palpites sobre a atribuição do Prémio Nobel da Literatura. Exibem listas apuradas de apostas dos viáveis vencedores e raramente acertam. As forças geoestratégicas ligadas à república das letras levam sempre a melhor, deitando por terra todas as expetativas ingenuamente criadas em torno dessa feira efémera de vaidades, que mal abrem os noticiários do dia logo caem no olvido. A situação repete-se depois à escala mais reduzida com os galardões de caráter local envolvendo uma ou várias comunidades linguísticas. É o que se passa, v.g., com o Prémio Camões, com a particularidade de os laureados serem regra geral portugueses ou brasileiros, contemplando, de vez em quando, um vulto da restante lusofonia. Assim aconteceu há um ano, quando os jurados juntaram uma autora moçambicana ao grupo de contemplados.  

Encontrei a obra de Paulina Chiziane sem dificuldade na primeira livraria onde entrei. Escolhi de imediato o Niketche ‒ Uma história de poligamia (2002), já distinguido no seu país de origem com o Prémio José Craveirinha, na qualidade de melhor livro do ano. Chamou-me a atenção o exotismo do título e a temática anunciada no subtítulo. No Glossário inserido na edição da Caminho, fiquei a saber referir-se a palavra inicial obscura a uma dança de amor da Zambézia e Nampula, a dar um sentido adicional ao texto. Romance regista a folha de rosto, mas bem lhe podíamos chamar com justiça ensaio, tratado, panfleto, reflexão ou manifesto antipoligâmico de cariz satírico, após a leitura dos seus quarenta e três capítulos repartidos por três centenas e meia de páginas. Guardadas as respetivas distâncias espaciotemporais, surgem-me na memória ecos distantes dos juízos lavradas na era barroca por um Diogo de Paiva de Andrada, no Casamento perfeito (1630), ou por um Dom Francisco Manuel de Melo, na Carta de guia de casados (1651). O contrato de união entre os parceiros envolvidos nos deveres conjugais está bem presente em todos eles, só variando o modo de conceber os rituais, cerimoniais, vínculos estabelecidos.

A estrutura discursiva seguida pela narradora-protagonista do relato desenha, com minuciosa precisão, o lento processo de transformação dum convencional casamento monogâmico numa complexa relação poligâmica. O historial dos factos ocorridos nesse período pouco preciso de tempo descrevem três grandes momentos decisivos da metamorfose familiar sofrida ou outros tantos atos formais duma típica comédia de costumes. Tudo começa com uma mera recusa das rivais por parte da esposa legítima, a que não falta o registo do confronto físico entre as partes envolvidas. Avança com um pacto estratégico entre as cinco consortes e o cônjuge comum, à luz das práticas tradicionais africanas multisseculares. Desfaz-se com o gradual afastamento das ex-parceiras maritais, anunciando assim o fracasso dos laços matrimoniais partilhados e a mudança cabal de paradigma até então experimentado. Ironia trágica lhe poderíamos chamar, se o tom de farsa emprestado aos factos revelados se não chegasse mais ao universo dramático duma tragicomédia africana dos nossos dias.

Lido e relido o testemunho ficcionado duma realidade factual ignorada por muitos, apercebemo-nos do quanto ainda por divisar da cultura ancestral do continente berço do homem, apesar de por termos andado mais de meio milénio. As forças narrativas ofereceram-nos a viagem de descoberta desse mundo ignoto com tanto mistério todavia por desvendar. Nos entreatos da peça em cena, Rami (a primeira dama, a rainha-mãe, o pilar da família) coloca-se frequentemente defronte da superfície fria, gelada e vidrada dum espelho estranho, revelador  e confidente a questionar-se sobre a sua sina de mulher partilhada pelo marido com as demais parceiras de poligamia forçada e com os dezesseis filhos tidos em comum. A respostas ouvidas ou imaginadas na intimidade daquele quarto escuro abrem-lhe pouco a pouco o caminho para um autoconhecimento pleno que a levará a atingir a liberdade plena nos últimos parágrafos, períodos e frases do livro, ao encontro da pureza, verdade e sinceridade há muito sonhadas e finalmente conquistadas.

3 comentários:

  1. Uma autora de quem ainda não li nada... E uma realidade infelizmente existente em muitos países, e não só africanos, onde o papel da mulher é subalterno...

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  2. É o livro que estou a ler e estou a gostar muito, de uma autora que não conhecia.

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  3. Uma autora que já tive o prazer de ler/conhecer (O Sétimo Juramento) brevemente irei regressar a ela inserida no próximo plano de leituras no feminino com a Balada do Amor ao Vento. Gosto de conhecer autores lusófonos, pelas realidades tão diferentes da nossa. Gostei muito da sua recensão.

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