20 de dezembro de 2022

A noite de Natal de Saramago

       Paula Rego, The Nativity, 2002       

Nesse tempo os Reis Magos ainda não existiam (ou sou eu que não me lembro deles) nem havia o costume de armar presépios com a vaca, o burro e o resto da companhia. Pelo menos na nossa casa. Deixava-se à noite o sapato («o sapatinho») na chaminé, ao lado dos fogareiros de petróleo, e na manhã seguinte ia-se ver o que o Menino Jesus lá teria deixado. Sim, naquele tempo era o Menino Jesus quem descia pela chaminé, não ficava deitado nas palhinhas, de umbigo ao léu, à espera de que os pastores lhe levassem o leite e o queijo, porque disto, sim, iria precisar para viver, não de ouro-incenso-e-mirra dos magos, que, como se sabe, só lhe trouxeram amargos de boca. O Menino Jesus daquela época ainda era um Menino Jesus que trabalhava, que se esforçava por ser útil à sociedade, enfim, um proletário como tantos outros. Em todo o caso, os mais pequenos da casa tínhamos as nossas dúvidas: custava a acreditar que o Menino Jesus estivesse disposto a emporcalhar a brancura da sua veste descendo e subindo toda a noite por paredes cobertas daquela fuligem negra e pegajosa que revestia o interior das chaminés. Talvez porque tivéssemos deixado transparecer por alguma meia palavra este saudável ceticismo, uma noite de Natal os adultos quiseram convencer-nos de que o sobrenatural não só existia mesmo, como o tínhamos dentro de casa. Dois deles, deviam ter sido dois, talvez o meu pai e o António Barata, foram para o corredor começaram a fazer deslizar carrinhos de brinquedo de um extremo a outro, enquanto os que haviam ficado connosco na cozinha diziam: «Estão a ouvir? Estão a ouvir? São os anjos.» Eu conhecia aquele corredor como se tivesse nascido nele e nunca me tinha apercebido de qualquer sinal de uma presença angélica quando, por exemplo, firmando-me num lado e no outro com os pés e as mãos, trepava pelas paredes acima até tocar com a cabeça no teto. Lá em cima, anjos ou serafins, nem um para amostra. Passado tempo, estava eu já na adolescência, tentei repetir a habilidade, mas não fui capaz. As pernas haviam-me crescido, as articulações dos tornozelos e dos joelhos tinham-se tornado menos flexíveis, enfim, o peso da idade...

José Saramago, As pequenas memórias (2006)

4 comentários:

  1. Gostei do texto, bem ao jeito do Saramago.
    Obrigada Artur, feliz dia.😘❤

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  2. Ainda ontem, eu e uma amiga recordámos os nossos natais familiares. Costumes diferentes, mas iguais no calor das festas familiares, em que havia sempre a alma que tudo animava. Do Menino Jesus ao Pai Natal, da árvore simples ao presépio que foi aumentando de tamanho, para nós era mesmo o convívio que contava...

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    1. Em traços gerais, o meu natal de infância não diferia muito deste descrito por Saramago. O Menino Jesus reinava no presépio e os Reis Magos eram os únicos figurantes que se deslocavam todos os dias alguns centímetros, desde o castelo colocado na parte mais elevada-afastada daquele Belém improvisado até à beira do recém-nascido. O pinheiro desempenhava um papel muito secundário nas festividades e o Pai Natal aguardava ainda uma deixa apropriada para entrar em cena. A presença da família era todavia o elemento mais significativo em toda a quadra...

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  3. Que tela!
    Os meus natais nunca foram muito felizes, as discussões familiares não faziam pausas nem nessa época.
    Depois, houve um antes e um depois do 25-04-1974, financeiramente.
    Qdo os filhos saíram de casa levaram com eles o espírito natalício.
    Porém, qdo procuro bem no armário das memórias, encontro momentos muito felizes, ontem e hoje…

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