«Gostava de ser manobrador de gruas encartado. Gostava de sair daqui, de ir para muito longe, com os três filhos e com a Milene. Sim, também percebo, gosta de gruas porque gosta de olhar de cima, gosta de manobrar pesos. Gosta de subir e de descer a correr. De chegar lá acima com o coração a bater. Gosta do risco quando o vento assobia nas gruas e elas podem virar. Gosta de subir lá acima mesmo quando elas podem virar e você pode morrer.»Lídia Jorge, O vento assobiando nas gruas (2002)
Uma vintena de anos após a publicação dum dos mais emblemáticos romances de Lídia Jorge, voltei à companhia d'O vento assobiando nas gruas (2002), projeto há muito tempo apetecido e há outro tanto adiado. A notícia de estar para breve a estreia da versão filmada da obra por Jeanne Waltz, realizadora suíça estabelecida há longa data entre nós, decidiu-me a pôr um ponto final nessa dilação inexplicável e sem sentido. Antecipei-me até ao lançamento da película a nível nacional. O confronto da história contada por escrito nas páginas dum livro e da projetada na tela duma sala de cinema ficou assim facilitada. Altura apropriada para traçar algumas notas rápidas de leitura antes que as luzes se apaguem e as imagens em movimento nos relatem os factos acontecidos com palavras ditas em vez de lidas.
A entidade descritiva abre o relato com a notícia da morte singular da matriarca dum poderoso clã familiar do sul do país. O corpo sem vida da avó Regina fora encontrado numa sexta-feira quente de verão junto à fábrica velha de conservas que lhe pertencia. Nesse 15 de agosto de 1994, o falecimento fora comunicado por dois agentes da Guarda Nacional Republicana à neta Milene, o único parente da vítima presente no local à data do óbito. Todos os seus tios e tias, primos e primas, achavam-se então a gozar um período de férias, a estudar ou a residir fora do país, cabendo-lhe assim a tarefa de resolver sozinha as disposições legais e práticas inerentes ao ocorrido, o que lhe conferirá desde aí o estatuto não só de figura central desse primeiro painel do retábulo textual, a «Cerimónia», como do par seguinte, «O Livro de Milene» intermédio e «O Vento Assobiando nas Gruas», em jeito de «Post-Scriptum».
O grande mistério do final trágico da anciã atravessa todo o texto, sem merecer em parte alguma o esclarecimento espectável do insólito. A omnisciência dos produtores de discurso nunca se manifesta na sua globalidade, para grande desespero tanto dos partícipes internos no tecido narrativo como dos recebedores externos do mesmo, que o fitam como meros leitores reais de factos fictícios. Ao revés, são equacionadas outras coordenadas estruturais definidoras da trama, plasmadas no cruzamento de duas sagas familiares distribuídas por três gerações seguidas. O percurso vital duns e doutros revelado em breves notas retrospetivas remonta a 1908, ano da ereção da unidade fabril que abonou a fortuna dos seus donos e serviria depois de lar aos imigrantes cabo-verdianos em terras portuguesas meridionais. O historial deste edifício e das várias vagas de operários, ocupantes e locatários que a encheram funciona como uma peça valiosa para pintar o cenário onde os dramas vividos ao seu redor se revelaram ao longo de grande parte do século passado.
Lidos os segmentos orgânicos formativos do todo efabulado, avulta no horizonte dos eventos trazidos à colação os amores pintados a claro/escuro da sobrinha oligofrénica dos omnipotentes senhores do local central do enredo e do irmão viúvo do cantor pop-folk de sucesso junto da comunidade crioula residente no país de acolhimento. Uma variante atualizada do Romeu e Julieta shakespeariano a transferir os dramas vividos pelos Montecchios e Capuletos de Verona para os Leandros e Matas de Santa Maria de Valmares. Os enamorados romanescos mais recentes sobrevivem, todavia, à morte dos seus precursores italianos e contraem casamento com a anuência tácita dos respetivos grupos parentais. Uma muito azada castração secreta aplicada à jovem deficiente mental permitiu a sua ligação efetiva ao manobrador encartado de gruas, simulando assim uma abertura de espírito antirracista das figuras proeminentes da intriga sem correrem o risco indesejado de gerarem uma prol mista eurafricana oriunda de dois mundos socioculturais tão diferentes entre si.
Já lá vão 20 anos desde que li o romance e a memória traiçoeira não me deixa recordar senão a figura do caboverdiano que sonha em manobrar uma grua... Magnífica resenha crítica que me abre o apetite para uma breve releitura!
ResponderEliminarUm coprotagonista à altura para inspirar a escolha do título dum livro que merece segundas leituras vinte anos após a sua publicação. Eu já o fiz com um prazer acrescido e algumas outras visitas de permeio.
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