„Im achtzehnten Jahrhundert lebte in Frankreich ein Mann, der zu den genial-sten und abscheulichsten Gestalten dieser an genialen und abscheulichen Ges-talten nicht armen Epoche gehörte. Seine Geschichte soll hier erzählt werden. Er hieß Jean-Baptiste Grenouille, und wenn sein Name im Gegensatz zu den Namen anderer genialer Scheusale, wie etwa de Sades, Saint-Justs, Fouches, Bonapartes usw., heute in Vergessenheit geraten ist, so sicher nicht deshalb, weil Grenouille diesen berühmteren Finstermännern an Selbstüberhebung, Menschenverachtung, Immoralität, kurz an Gottlosigkeit nachgestanden hätte, sondern weil sich sein Genie und sein einziger Ehrgeiz auf ein Gebiet beschrän-kte, welches in der Geschichte keine Spuren hinterlässt: auf das flüchtige Reich der Gerüche.“
Por vezes pergunto-me qual a relação existente entre um bestseller e uma masterpiece, i.e., até que ponto a quantidade e a qualidade são compagináveis. O bom senso diz-nos que o número de cópias postas à disposição do público raramente estabelece uma real conexão de causa-efeito com a sua superior poeticidade intrínseca. Regra geral, necessitamos que o tempo nos responda de modo cabal e irrefutável. O sucesso vem invariavelmente de onde menos se espera. Patrick Sünskind, v.gr., um ilustre desconhecido até à data da publicação d'O Perfume. História de um assassino (1985), obteve um êxito global imprevisível com a venda nos primeiros anos de 20 milhões de exemplares traduzidos para 40 línguas. A crítica especializada não se cansou de lhe tecer elogios, o que levaria Tom Tykwer a adaptá-lo ao cinema duas décadas depois, ao que consta com ótimos resultados de bilheteira. Vi-o há alguns anos num canal televisivo e li-o agora no formato de livro impresso. Resgatei-o duma estante onde esperava há uma eternidade para ser visitado e apreciado. Foi o que aconteceu.
Um impulso causado pela memória guardada do filme incitou-me a visitar uma dessas lojas que pululam nos centros comerciais, a fim de me deixar impregnar das fragrâncias, aromas e odores ali existentes, oferecidos a quem os quiser cheirar e levar depois para casa metidos em frascos. Prescindi ato contínuo da ideia de invadir esse ambiente saturado de eflúvios olorosos com intuitos publicitários. Remeti-me exclusivamente ao prazer da leitura e a imaginar os vapores subtis emanados das essências referidas ao longo das duas centenas e meia de páginas, cinquenta e um capítulos e quatro partes que compõem a história de Jean-Baptiste Grenouille, a figura central já retratada de modo sucinto, abrupto e acutilante no subtítulo do relato que a abriga. Escusado será dizer que os vestígios olfativos ainda sensíveis da tinta impressa exerceram o seu papel adjuvante único.
O traço mais surpreendente do percurso existencial do biografado reside no facto da mãe o ter dado à luz numa pestilenta banca de peixe da capital francesa, o que não o impediu de desenvolver uma capacidade inata para destilar as mais penetrantes essências que o engenho e arte das mãos humanas alguma vez criaram. Acresce a singularidade de a despeito de ter nascido com uma pele totalmente inodora e, mesmo assim, possuir um nariz prodigioso na captura das mais raras exalações geradas pela natura. Por outras palavras, ser um ser que cheira sem ter cheiro. A ampliação dessa particularidade é feita através dum rigoroso plano de formação, que passa por uma aprendizagem inicial na casa dum grande mestre perfumista de Paris e uma especialização numa oficina do mesmo ramo em Grasse. É aí que descobre, por fim, o perfume ideal, aquele que o converteria em simultâneo na mais genial e abominável criatura que a centúria de setecentos conheceria. É que para o seu fabrico se viu obrigado a assassinar vinte cinco jovens virgens da cidade que o acolhera.
A aplicação da rescendência elaborada pelo protagonista teve um efeito extraordinário na cidade. Na visão do narrador, terá tido mesmo a eficiência dum verdadeiro e assombroso milagre. A capacidade inebriadora do herói/anti-herói da fábula foi infalível. De condenado aos mais bárbaros suplícios, conseguiu a absolvição unânime de toda a comunidade, entregue a uma inaudita reação orgiástica. As leituras explicativas desta histeria coletiva inusitada causaram uma estranheza ainda maior no próprio romancista. Em declarações subsequentes, terá considerado que a sua mensagem não tinha sido entendida por todos como almejara. Afinal, só pretendera manifestar o seu espanto pelo fascínio exercido por Hitler no povo germânico que o idolatrava, apesar das atrocidades cometidas em seu nome. A literatura por vezes tem destas coisas. É necessário que as entidades emissoras internas e externas envolvidas ponham os pontos nos ii nas mensagens transmitidas, facilitando ao público recetor uma visão nítida da luz no fundo do túnel. Neste caso preciso, o esclarecimento extratextual pareceu-me perfeitamente plausível. Facto também ele inusitado, mas muito bem-vindo depois de lido o livro e visionado o filme.