26 de junho de 2024

Patrick Süskind e a história assombrosa de um assassino fabricante de perfumes

„Im achtzehnten Jahrhundert lebte in Frankreich ein Mann, der zu den genial-sten und abscheulichsten Gestalten dieser an genialen und abscheulichen Ges-talten nicht armen Epoche gehörte. Seine Geschichte soll hier erzählt werden. Er hieß Jean-Baptiste Grenouille, und wenn sein Name im Gegensatz zu den Namen anderer genialer Scheusale, wie etwa de Sades, Saint-Justs, Fouches, Bonapartes usw., heute in Vergessenheit geraten ist, so sicher nicht deshalb, weil Grenouille diesen berühmteren Finstermännern an Selbstüberhebung, Menschenverachtung, Immoralität, kurz an Gottlosigkeit nachgestanden hätte, sondern weil sich sein Genie und sein einziger Ehrgeiz auf ein Gebiet beschrän-kte, welches in der Geschichte keine Spuren hinterlässt: auf das flüchtige Reich der Gerüche.“

Por vezes pergunto-me qual a relação existente entre um bestseller e uma masterpiece, i.e., até que ponto a quantidade e a qualidade são compagináveis. O bom senso diz-nos que o número de cópias postas à disposição do público raramente estabelece uma real conexão de causa-efeito com a sua superior poeticidade intrínseca. Regra geral, necessitamos que o tempo nos responda de modo cabal e irrefutável. O sucesso vem invariavelmente de onde menos se espera. Patrick Sünskind, v.gr., um ilustre desconhecido até à data da publicação d'O Perfume. História de um assassino (1985), obteve um êxito global imprevisível com a venda nos primeiros anos de 20 milhões de exemplares traduzidos para 40 línguas. A crítica especializada não se cansou de lhe tecer elogios, o que levaria Tom Tykwer a adaptá-lo ao cinema duas décadas depois, ao que consta com ótimos resultados de bilheteira. Vi-o há alguns anos num canal televisivo e li-o agora no formato de livro impresso. Resgatei-o duma estante onde esperava uma eternidade para ser visitado e apreciado. Foi o que aconteceu.

Um impulso causado pela memória guardada do filme incitou-me a visitar uma dessas lojas que pululam nos centros comerciais, a fim de me deixar impregnar das fragrâncias, aromas e odores ali existentes, oferecidos a quem os quiser cheirar e levar depois para casa metidos em frascos. Prescindi ato contínuo da ideia de invadir esse ambiente saturado de eflúvios olorosos com intuitos publicitários. Remeti-me exclusivamente ao prazer da leitura e a imaginar os vapores subtis emanados das essências referidas ao longo das duas centenas e meia de páginas, cinquenta e um capítulos e quatro partes que compõem a história de Jean-Baptiste Grenouille, a figura central já retratada de modo sucinto, abrupto e acutilante no subtítulo do relato que a abriga. Escusado será dizer que os vestígios olfativos ainda sensíveis da tinta impressa exerceram o seu papel adjuvante único.

O traço mais surpreendente do percurso existencial do biografado reside no facto da mãe o ter dado à luz numa pestilenta banca de peixe da capital francesa, o que não o impediu de desenvolver uma capacidade inata para destilar as mais penetrantes essências que o engenho e arte das mãos humanas alguma vez criaram. Acresce a singularidade de a despeito de ter nascido com uma pele totalmente inodora e, mesmo assim, possuir um nariz prodigioso na captura das mais raras exalações geradas pela natura. Por outras palavras, ser um ser que cheira sem ter cheiro. A ampliação dessa particularidade é feita através dum rigoroso plano de formação, que passa por uma aprendizagem inicial na casa dum grande mestre perfumista de Paris e uma especialização numa oficina do mesmo ramo em Grasse. É que descobre, por fim, o perfume ideal, aquele que o converteria em simultâneo na mais genial e abominável criatura que a centúria de setecentos conheceria. É que para o seu fabrico se viu obrigado a assassinar vinte cinco jovens virgens da cidade que o acolhera.

A aplicação da rescendência elaborada pelo protagonista teve um efeito extraordinário na cidade. Na visão do narrador, terá tido mesmo a eficiência dum verdadeiro e assombroso milagre. A capacidade inebriadora do herói/anti-herói da fábula foi infalível. De condenado aos mais bárbaros suplícios, conseguiu a absolvição unânime de toda a comunidade, entregue a uma inaudita reação orgiástica. As leituras explicativas desta histeria coletiva inusitada causaram uma estranheza ainda maior no próprio romancista. Em declarações subsequentes, terá considerado que a sua mensagem não tinha sido entendida por todos como almejara. Afinal, pretendera manifestar o seu espanto pelo fascínio exercido por Hitler no povo germânico que o idolatrava, apesar das atrocidades cometidas em seu nome. A literatura por vezes tem destas coisas. É necessário que as entidades emissoras internas e externas envolvidas ponham os pontos nos ii nas mensagens transmitidas, facilitando ao público recetor uma visão nítida da luz no fundo do túnel. Neste caso preciso, o esclarecimento extratextual pareceu-me perfeitamente plausível. Facto também ele inusitado, mas muito bem-vindo depois de lido o livro e visionado o filme.

20 de junho de 2024

O Orlando de Virginia Woolf visto por Lídia Jorge n'O Belo Adormecido

QUANDO A LITERATURA FALA DE LITERATURA...

Começamos a ler um conto e este remete-nos uma e outras vezes para um romance que desconhecíamos e cuja intriga resumida nos convida a visitar o original. Assim se passa das palavras de Lídia Jorge n'O belo adormecido (2004) para a tessitura narrativa de Virgínia Woolf no Orlando (1928).

Acontece na vida dos atores, mesmo aqueles cuja intimidade não se torna matéria universal da intriga dos magazines. Acontece. Tudo isso porque me tinham proposto e eu havia aceitado desempenhar o papel do único personagem colhido da Literatura, que vive durante vários séculos, que a meio do percurso muda de sexo, modos e trejeitos e fatos, meios de transportes e palácios, e procede a todas essas mudanças através de um striptease mental mirabolante, praticado diante de toda a gente. Isto é, eu iria ser Orlando, ele mesmo.

A personagem que eu representava invocava a Grande Geada que se abatera sobre a Inglaterra, na altura em que Orlando era moço. A tirada referia o momento em que a corte inglesa fora para Greenwich e o rio gelado pudera ser varrido com vassouras como se fosse o soalho dum palácio. Sobre o rio patinava uma princesa russa com título Romanovitch, a linda Sacha, da qual eu, jovem ardente me enamorava. Era o início do século dezassete britânico. [...Estava eu, precisamente, a repetir palavras, embrulhada na cama de rede, a decorar a passagem em que a personagem invocava o momento em que o Tamisa, iluminado pelos archotes, mostrava silhuetas dos peixes congelados no interior da sua massa de água solidificada, podendo os príncipes e as princesas de todas as nações patinar por cima, e eu, que não era príncipe mas lorde, encontrava-me precisamente nesse transe de ser jovem lorde patinador, quando me tinha apercebido de que da realidade surgia uma sombra.

Por mim, poderia garantir à pessoa que me esperava no Salão do Ritz, que por aqueles dias o meu melhor divertimento tinha consistido em decorar o meu papel, estando a personagem que me era cara cada vez mais volátil e mais densa, a aproximar-se, de hora a hora, da configuração burlesca para a qual fora concebida, feita de propósito para pulverizar a identidade e a História, e eu pronta para a interpretar. Dez folhas daquelas já eu fora capaz de reproduzir, de olhos fechados, e agora eu abria a janela que dava para o poito de cimento o seu guarda-sol aberto, e prosseguia como se estivesse mudando de sexo, passando de homem a mulher, fora do lugar e do tempo ‒ «Damas, cavalheiros, despertei. Que as trombetas digam a verdade. Verdade, verdade, verdade, estou nu na vossa frente…»

Mal olhava para os papéis, o tempo fazia-se outrora, eu passava a ser um jovem lorde inglês transformado em lady, e decorava o meu papel de mulher recente, agora amante de um homem, tendo de proferir frases retumbantes, a propósito da cerimónia do meu casamento ‒ «Eu chamei por ele, ele chamou por mim, e as nossas palavras subiram e giraram como falcões bravios por entre os campanários…». Diria eu pela minha personagem, tanto ela quanto o meu marido, ambos para sempre e definitivamente ambíguos, pois apenas uma célula, quando muito célula e meia, nos distinguia em matéria de ser e sexo.

Fechei os olhos, entregue à personagem que me levava agora pelas longínquas estradas de gravilha rasgadas ao longo dos prados das Ilhas Britânicas, gares ogivais do fim do século dezanove, automóveis pioneiros do século vinte, estava agarrada  ao soalho, a medir a cintura e a barriga das pernas, estava como deve estar uma profissional de teatro atenta, dominada, cumprindo um programa por objetivos, etapa após etapa. Completamente lúcida.

Eu duvidava, porém, que as palavras que Martim havia recolhido do filme da Tilda para rematar as minhas falas de quatrocentos anos, fossem adequadas para encerrar o século vinte de Orlando. Diria eu, de calção pelo joelho ‒ «Nem senhoras nem senhores. Estou entre a vida e a morte, entre o princípio e o fim. Não sou homem, nem mulher… Já estou começando outro início e ainda nem terminei este fim Estou entre a vida e a morte» [...] Eu preferia que se regressasse, de facto, àquele ano de mil novecentos e vinte e oito, metade da personagem voasse no aeroplano, e a outra metade mostrasse os seios à lua e tivesse um colar de pérolas que ardesse na escuridão, conforme o original, e os dois fossem só um, que por instantes da vida se separavam. Para quê separar o que era de Orlando?

Lídia Jorge, O belo adormecido (Lisboa: Dom Quixote, 2004, pp. 15, 32-33, 40, 56, 63, 68-69)

Tilda Swinton no écran (1992) & Isabelle Huppert no palco (1993)

14 de junho de 2024

Triangulação musical, recitada, entoada e silvada ao ritmo da zamba argentina

 Atahualpa Yupanqui - José Larralde - Jorge Cafrune 

Era un lindo caballo, mi caballo | Abría su relincho en la mañana, saludándolo al sol | Caracoleaba sobre el parche del camino cuando íbamos al pueblo | Y una noche, no sé qué le pasó, no sé qué le pasó | Y era un lindo caballo, mi caballo...
Zamba de mi esperanza | Amanecida como un querer | Sueño, sueño del alma | Que a veces muere sin florecer...
Quién me enseñó a ser bruto | Quién me enseñó, quién me enseñó | Si en la panza de mamá | No había ni escuela ni pizarron...

Entrei no universo mágico de Atahualpa Yupanqui ainda em Lisboa. numa época em que as rádios não se limitavam a passar a qualquer hora do dia e da noite música anglo-saxónica. Não me recordo bem do momento exato em que ouvi pela primeira vez a voz, a guitarra e os versos de Don Ata, ao ritmo tradicional cantado-recitado-dedilhado das payadas, chacareras, tonadasvalses, milongas, coplas e zambas argentinas. Os textos originais ou coligidos do ¡Basta ya!, do Duerme negrito e das Preguntitas sobre Dios já os teria lido e relido nos encontros semanais da Capela do Rato. Surpreendente. Depois gastei uma cassete magnética que uma amiga minha me gravara e oferecera, à força de tanto a reproduzir.

O fascínio por uma zamba cantada, recitada e trinada ao som duma guitarra criolla não deixou de crescer até hoje. Ampliou-se com as aprendizagens que as minhas amizades estremenhas de longa data me foram ofertando. Lembro uma incursão noturna pelas vastas planícies raianas de Olivença e da charla que tive com o meu amigo Fernando G. sobre os cantautores, pesquisadores, compiladores e divulgadores da cultura nativa argentina. Dos grandes vultos então referidos, fixei o de Jorge Cafrune. Já em Badajoz, comprei uma cinta do recém-descoberto El Turco que ainda ouço sempre que para aí estou virado. Delicio-me agora com os duetos partilhados com o jovem Marito na Virgen India. ¡Precioso! 

A triangulação musical, recitada, entoada e silvada ao ritmo da zamba argentina, moldada pelos sentires dos aedos, vates, jograis atuais, culmina com José Larralde, El Cantor Orillero, ainda hoje ativo e a encantar-nos com o seu sentir profundo e pungente. Notei-o desde os primeiros acordes declamados e entoados do Hombre e das demais fachas incluídas no álbum a que dá nome. Os dialetos, falares e formas particulares de realizar a língua oficial do país andino-atlântico, imposta pelos invasores e conquistadores vindos do outro lado do mar 500 anos antes. Escutei-o religiosamente em terras hispânicas e escuto-o agora enquanto escrevo. paixões que vêm para ficar e perdurar. Afortunadamente.

5 de junho de 2024

Memórias da Memória

Hope Kroll, Homebound, 2018

Se bem me lembro...

Primeiro foram os nomes, depois as palavras soltas e algumas frases feitas. Nada de mais. Nem sempre recordo muito bem o que comi na véspera ou se já tomei os medicamentos ou não, mas ainda me lembro de quem sou e por ponde ando ou estou. Do mal o menos. Numa consulta de relativa rotina, descobri ter um défice de vitamina B12. Os suplementos aconselhados já começaram a ser injetados e ingeridos. Aguardo resultados.

Ainda tenho memória de ter memórias. Aquelas que vêm de longe, passo ante passo, cada vez mais espaçadas, mais distantes, mais discretas. Vou-me atirar aos alimentos que parece travarem essa tendência de queda na confusão, torpor e demência. Venha desde já um reforço claro de produtos láteos, proteínas da terra e do mar, cereais e leguminosas. Estou a apostar nos ovos, salmão, carne, queijo e algumas coisitas mais.

Entendidos os esquecimentos benignos, porque efémeros, há que evitar os esquecimentos malignos, porque permanentes. Completar a cultura agri com a cultura animi. Alternar o alimento do corpo com o alimento do espíritoEm proporção idêntica. Porque nem só de pão vive o homem. Faço-o caminhando e cantando, lendo e escrevendo, meditando e criando. Mantendo-me ligado a estas histórias sem retornos expectáveis no horizonte.

A literatura de autoajuda aponta uma série infinita de orientações que não deixo de seguir em dose q.b., por pertencerem ao universo do senso comum. De todas elas, aprecio especialmente aquela que nos aconselha o consumo do queijo, pela sua riqueza na vitamina B12. É que, contrariando a vox populi, afinal o queijo não só não potencia o esquecimento, como até nos ajuda a manter a memória ativa. Deo gratias e que assim seja.

Stick model of B12