30 de setembro de 2024

Elena Ferrante, história da infância e da adolescência napolitana da amiga genial

«Feci un risolino nervoso, poi dissi: “Grazie, ma a un certo punto le scuole finiscono”.
“Non per te: tu sei la mia amica geniale, devi diventare la più brava di tutti, maschi e femmine”.
Si alzò, si tolse mutande e reggiseno, disse: “Dài, aiutami, che sennò faccio tardi”».

Data de muito o meu conhecimento da existência de Elena Ferrante, nome enigmático ou pseudónimo de conveniência duma autora sem rosto visível, sem voz audível, sem corpo tangível. Os ecos discretos que até mim foram chegando diziam-me ser senhora duma escrita prodigiosa, duma vasta fluência discursiva, duma inesgotável capacidade criativa. Geradora dum número crescente de bestsellers traduzidos em inúmeros idiomas e países, ganhadora de prémios dentro e fora das fronteiras italianas, converteu-se a passos largos num dos grandes fenómenos literários ocidentais nascidos na mudança de século e de milénio. Por todas essas razões, resisti um pouco a escolher um livro seu, a lê-lo sem reservas de fio a pavio e a comentá-lo no final sem juízos de valor pré-concebidos. Resolvi-me a fazê-lo agora em tempo de férias de verão. Fui vencido por um impulso pouco habitual em mim. Dei com a A amiga genial (2011) a olhar-me de perfil numa bancada da Fnac local, ladeada por um conjunto de textos com a sua chancela, entre os quais se encontravam os comparsas da designada Tetralogia Napolitana. Fiquei-me pelo título inaugural da série. Os restantes ficarão de reserva à minha espera nessa livraria ou numa outra por onde os meus olhos os forem descortinando, à medida que a leitura me for motivando a prosseguir a viagem pelo seu interior.

O mergulho profundo no universo emblemático das sagas clássicas é imediato. Acontece num ápice mal abrimos o tomo inaugural da obra e nos deparamos com o completo Índice das Personagens que tudo leva a crer terão um papel decisivo na trama ainda por contar. Parece funcionar ao modo da indicação do elenco participante numa peça teatral ou como uma ajuda suplementar da entidade narrativa aos potenciais recetores externos. É sensato que não se percam num elenco constituído por meia centena de atores com direito a nome, apelido e um ou outro diminutivo, distribuídos por uma dezena de famílias, grupo de professores e outros figurantes secundários. Em termos didascálicos, as suas práticas laborais traçam-nos outrossim os cenários em que os dramas pessoais por si protagonizados se foram representando. Nesta enumeração exaustiva, encontra-se Elena Greco, a narradora de primeira pessoa, cuja centralidade na ação partilha com Raffaella Cerullo, a sua maior amiga. A história das duas, Lenuccia/Lenù e Lina/Lila, como também são chamadas, principia quando se cruzam na escola primária e tudo indica se manterá ativa pela vida fora.

A urdidura estrutural da tetralogia romanesca distribui-se por quatro largos atos ou ciclos existenciais (Infância-Adolescência, Juventude, Tempo Intermédio e Maturidade-Velhice), agregando cada um deles um grupo variável de cenas adicionais, devidamente ladeados por um prólogo e um epílogo devidos. Os núcleos familiares do sapateiro, porteiro, charcuteiro, mecânico, ferroviário-poeta, vendedor de fruta, barista-pasteleiro e farmacêutico, desenvolvem as suas atividades enquanto dão curso ao seu dia a dia quotidiano num bairro limítrofe de Nápoles, com algumas passagens pela grande cidade e uma incursão estival da relatora na ilha de Ischia. Entre o alfa e o ómega da primeira etapa, os intervenientes seguem os estudos académicos que o seu extrato social permite ou apetência intelectual exige, estabelecem relações de amizade/rivalidade próprias da idade, seguem/recusam os ofícios ancestrais dos progenitores, tentam singrar nos escolhos difíceis dum contexto geracional vizinho da segunda guerra mundial, crescem, amadurecem, estabelecem-se, namoram, casamNada de mais no quadro do neorrealismo italiano típico. Preparam, em suma, os novos desafios que a etapa adulta lhes propuser, tal como as parcelas seguintes da crónica coletiva onde se abrigam revelem na altura certa.

O desfile das pequenas/grandes sequências autobiográficas entram abruptamente em palco, quando o filho quarentão de Lila Cerullo telefona a Lenù Greco a informá-la do desaparecimento da mãe, havia já duas semanas, e a solicitar ajuda para a localizar. O pedido fica por satisfazer, dado o claro desinteresse da interpelada, que, ao invés, o aconselha a aprender a viver sozinho. Decide, então, recorrer às suas memórias antigas de sessenta anos para passar a escrito os principais momentos vitais que haviam traçado juntas, decidindo-se a revelar a razão pela qual a sua cúmplice expressara em dada ocasião a vontade de sumir de vez sem deixar rasto atrás de si. O leitmotiv efabulativo estava lançado para a tarefa de explicar esse desidério extremo. Ponto de partida também para lançar as pistas sobre a sua genuína identidade. No final do relato, fica-se na dúvida de saber de fonte segura quem é de entre as duas a amiga genial. Provavelmente ambas, na perspetiva cruzada tanto duma como doutra. A técnica do suspeição comum nos folhetins jornalísticos ou telenovelas televisivas fica no ar. Um incentivo para prosseguir as leituras desta primeira entrega ao domicílio dum texto feito à medida da literatura de cordel, mas com qualidade poética q.b. para merecer a pena a viagem de descoberta pelo seu interior.

4 comentários:

  1. Li o primeiro, “A Amiga Genial”, não regressei à escritora.
    Há pouco tempo li “Léxico Familiar”, de Natália Ginzburg, percebi então onde a Ferrante foi buscar o estilo da escrita.
    Pretendo regressar a Ginzburg.

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  2. Cristina Ramos Horta3 de outubro de 2024 às 11:40

    Tenho tantos livros para ler, precisava de outra vida...

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  3. Ainda não li nada desta autora. As sinopses dos romances não me conquistaram até agora.

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  4. Não entendo tanto alarido e incenso á volta desta escritora. Medíocre, e como concluí uma leitora e que reitero, é uma imitação da Ginzburg.

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