12 de setembro de 2024

Marcel Proust, quarta busca do tempo perdido entre Sodoma e Gomorra

« Ainsi les hommes peuvent avoir plusieurs sortes de plaisirs. Le véritable est celui pour lequel ils quittent l'autre. Mais ce dernier, s'il est apparent, ou même seul apparent, peut donner le change sur le premier, rassure ou dépiste les jaloux, égare le jugement du monde. »

Até ao momento, tenho voltado todos os anos à companhia do Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Tenho-o feito nos meses mais calmos das férias de verão, alternando os banhos de sol e mar com os mergulhos centrados nas centenas de páginas de cada um dos painéis mais ou menos autónomos da Heptalogia do grande contador de histórias gaulês. Nesta volta, atirei-me ao Sodoma e Gomorra (1921-1922), publicado na origem em duas partes avulsas, reunidas agora num volume único da Folio Classique, editado por Antoine Compagnon, que também o anotou profusamente, resumiu capítulo a capítulo e organizou um completo dossier documental e bibliográfico. Por este andar e ritmo, ainda terei de realizar algumas viagens mais no próximo triénio até concluir o percurso total da obra lá nesse distante horizonte onde se reside O tempo reencontrado.

Depois de ter avivado as reminiscências dos verdes anos viradas para o lado dos Swann [TI], de ter flanado à sombra das jovens na fina flor da idade [T. II] e de se ter voltado para a banda dos Guermantes [TIII], o narrador anónimo da viagem autobiográfica foca-se no universo homoerótico dos homens-mulheres, oriundos das cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra, poupados ao castigo divino do fogo/enxofre caído do céu [TIV]. O caso Dreyfus (1894-1906) muitas vezes aludido no relato está no seu auge, a marcar a viragem do século (1900), ponto fulcral da Belle Époque (1870-1914) e da Art Nouveau (1890-1920). É neste contexto de grande protagonismo da cultura francesa no mundo que a ação decorre e se acerca de todos os leitores que continuam a seguir as memórias do narrador a servirem de respaldo aos fantasmas secretos experienciados pelo autor real de histórias imaginadas.

A etapa dos vinte e poucos anos do protagonista-relator é passada entre Paris e Balbec, completada por uma intensa peregrinação pelas imediações da estância balnear normanda. Os comboios locais e regionais, as deslocações em viaturas de atração animal ou automóvel são frequentes. Os companheiros de percurso, convívio ou permanência nos espaços cénicos são os mesmos de sempre. Uma parada constante de duques e duquesas, de príncipes e princesas, no meio de muitos outros titulares da mais alta extração hierárquica em pleno período da Terceira República (1870-1940). Em cada uma das quase sete centenas páginas das alegadas memórias involuntárias trazidas à colação, o snobismo, arrogância, futilidade, pedantismo e altivez pululam, a caraterizar o mundo da frivolidade, aparência, ostentação, cinismo e soberba da alta aristocracia sobre a baixa, da grande burguesia sobre a pequena, dos ricos sobre os pobres. Com boa vontade, podemos ver aqui e ali uma fina ironia, sátira ou crítica mais ou menos discerníveis do autor, caso não caísse involuntariamente nos mesmos defeitos de que era acusado fora do universo fingido dos romances.

As principais linhas condutoras da trama são fáceis de traçar e estão ancoradas na relação oscilante do narrador por Albertine, na atenção cruzada desta por uma ou outra das suas amigas mais chegadas e na atração libidinosa do Barão de Charlus pelos efebos caídos na sua esfera de interesse. Sintetizando, amores/desamores contados intermitentemente ao correr da pena, para dar espaço às inúmeras tiradas repletas de frases longas, períodos extensos e parágrafos gigantescos da fabulação. A falta duma tessitura narrativa continuada é compensada pelas digressões/reflexões infindas sobre arte, letras, música, política, filosofia, religião, genealogia, etimologia, viagens, geografia, toponímia, medicina, divisas e outros assuntos, com um especial destaque para o designado vício anormal e imoral dos invertidos, sejam eles homens ou mulheres.

Desconhece-se o nome do memorista deste imenso retábulo formado por sete imensas telas temporais de vidas vividas e a viver. Bem se podia chamar Marcel, tal como o romancista que o trouxe à luz do dia, substituindo-se o Proust por um qualquer apelido de fantasia literária. É que a fusão da ficção e do factual são por demais evidentes nesta manta de retalhos de eventos pretéritos registados em formas de escrita impressa nas folhas em branco duma existência de faz de conta. Talento não lhe faltou para pintar com palavras o políptico duma existência singular, idêntica a tantas outras, só lhe tendo faltado a coragem para assumir num cenário real os traços menos recomendáveis atribuídos aos atores trazidos à ribalta na manha gráfica dum livro. Bem vistas as coisas, ainda bem que os pruídos vigentes na época o levaram a tomar essa decisão. Ficamos todos a ganhar. Sobretudo aqueles que, como eu, ainda acreditam no prazer ilimitado da leitura. E venham os próximos episódios, que a busca do tempo perdido ainda tem muito para desvendar.

3 comentários:

  1. Admiro a persistência! Li o primeiro romance e fiquei por ali... Que o próximo triénio continue a assegurar-te o mesmo prazer na leitura dos próximos volumes!

    ResponderEliminar
  2. Ainda bem que tenho um amigo que se tem dedicado a ler tomo a tomo, a saga de Proust e no final escreve e partilha tão eloquentes resenhas!
    Poupa-me o tempo de os ler…

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Fico satisfeito por saber que as minhas leituras anuais e persistentes dos diferentes tomos da «Recherche» têm alguma serventia. Pessoalmente faço-o como um desafio à minha paciência de ler no original um texto de Proust como só ele sabia escrever e que atualmente ninguém se atreve mais a imitar. A história, depois, continua a oferecer-nos uma poeticidade literária única, dificilmente igualável e impossível de ultrapassar por muito que se faça. E nas próximas férias, se, entretanto, conseguir encontrar o 5.º volume em francês que dá continuidade à saga…

      Eliminar