2 de setembro de 2024

Mercearias & Supermercados

Roque Gameiro - 1901
João da Esquina conservava sobre José das Dornas um olhar desconfiado
[Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna]

Mercearias de Bairro & Supermercados de Periferia

Em meados da década de 6O, a minha cidade acordou alvoroçada, porque estava anunciada a abertura do primeiro supermercado do burgo. As trombetas de triunfo duma nova era soaram com pompa e circunstância. O toque de finados dos velhos tempos ecoaram em surdina, meio envergonhados, como se viesse de muito longe, dum espaço assustadoramente distante. Situado na esquina de duas vias centrais de trajeto urbano, mais não era do que um longo corredor repleto de expositores oferecidos ao livre acesso dos clientes. À entrada havia os carrinhos com rodas para levar as compras até à caixa registadora. Tudo como nos filmes que o único canal então existente da RTP transmitia em dias certos e a preto e branco.

Para trás, começaram a ficar as tradicionais mercearias de bairro, aquelas que estavam ao dispor das necessidades básicas de toda a vizinhança. Na proximidade da minha casa, havia um par delas à distância dum atravessar de rua. Tornámo-nos clientes em exclusivo da que ficava mais perto de nós. Também parecia ser a melhor. Os produtos estavam à vista de todos, mas separadas do freguês por um eficiente balcão. Numa das pontas, estava munido duma guilhotina de cortar bacalhau e, na outra, duma bomba medidora de azeite. O centro de operações era ocupado por uma balança a princípio bem calibrada, que presidia a todas as operações de venda avulso, como uma verdadeira rainha que era e não prescindia de ser.  

O supermercado pioneiro da minha terra já não existe e a mercearia da minha rua já fechou as portas há uma eternidade. Alguns desses estabelecimentos renderam-se aos novos tempos. Os menores passaram a minimercados, lojas gourmet e superettes. As maiores deslocaram-se para a periferia transformadas nos hipermercados dos shopping centers. Atropelam-se uns aos outros, esvaziam as cidades aos fins de semana e dias feriados, converteram-se nos grandes templos do consumo dos bem de primeira e nenhuma necessidade. Dá vontade de dizer como Platão na República e José Saramago repetiu na epígrafe inicial da Caverna: «Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós».

2 comentários:

  1. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades... De Campo de Ourique, guardo memória de pequenas mercearias e lojas de bairro, um pouco atravancadas mas de trato afável. Uma ou outra sobreviveu, nas ruas mais recuadas porque os melhores espaços foram conquistados pelas superfícies maiores que, por sorte, são supermercados que não esvaziam o bairro nem nos fins de semana. Passa-se o mesmo no bairro onde moro, felizmente, pelo que as ruas estão sempre vivas. Os templos de consumo ficam para uma compra mais exigente... ou para sala de visitas dos reformados que têm horas a mais para matar.

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  2. Em minha opinião, começou por ser uma novidade, e de facto trouxe variedade e preços mais baixos.
    Curiosidade satisfeita vai-se regressando a lojas mais pequenas e próximas.
    Já não há pachorra para fazer compras em grandes superfícies…

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