29 de outubro de 2024

Lídia Jorge, o vale da paixão e a manta do soldado desenhador de pássaros

«‒ “Ah, o que não te terão contado! Ele ria, estava quase sempre a rir  Aposto que te falaram dum estroina com a alcunha de soldado e duma manta que usava por colchão para desenhar os pássaros. O que não te terão dito sobre essa manta que usava por colchão para desenhar pássaros. O que não te terão dito sobre essa manta e sobre esses pássaros... Falaram-te de mim como um trafulha, um trotamundos, um atravessa-mares. Aposto que te envenenaram. O que sabes tu sobre isso?” Por momentos, a sua cara perdia a alegria e era tomado por uma espécie de ira que o toldava, fazendo-lhe os olhos brancos “Diz-me, repete o que te disseram eles. Diz-me a verdade...”»
Lídia Jorge, O vale da paixão (1998)

Muito de vez em quando, regresso à companhia dos livros que numa primeira leitura me deixaram uma marca indelével. Esse impulso pouco habitual tem-me acontecido com a escrita de Lídia Jorge. Sempre que o faço, fico com a sensação de se tratar da sua melhor obra e, por via das dúvidas, resgato da estante que lhe é dedicada em casa um outro título seu. Nunca me decidi qual deles ocupa o topo da lista como vencedor absoluto. São todos bons e difíceis de serem suplantados pelos demais frutos colhidos no mesmo pomar. Só fico espantado pelo facto dos diversos jurados do Prémio Camões a ignorarem sistematicamente, ano após ano, das suas escolhas, ao invés de outros areópagos literários situados dentro e fora das nossas fronteiras nacionais e linguísticas. Alguma razão obscura haverá que urge desfazer sem grandes delongas de permeio.

A última releitura que encetei do corpus novelesco de Lídia Jorge foi dada à luz entre nós com a denominação insinuante de O vale da paixão (1998), crismado depois noutras paragens editoriais com as designações alternativas de A manta do soldado ou de O pintor de pássaros, criando uma etiquetagem perfeita e lapidar para sintetizar em poucas palavras o argumento do romance, também consignada na epígrafe acima registada. A listagem poderia ainda ser ampliada se se tivesse seguido o titulamento dado pela filha ilegítima e sobrinha oficial do trafulha, trotamundos e atravessa-mares, às três narrativas fantasiosas, agrestes e abomináveis que compusera e oferecera ao genitor encoberto como vingança, estabelecido então em Buenos Aires como proprietário do Bar Los Pájaros, com todo o simbolismo contido nas fusões lexicais de O pintador de pássaros, A charrete do diabo e O soldadinho fornicador. Mas o leitor terá de saltar porém da capa do livro para a etapa final do relato para os ver inscritos em letra de forma.

Com ação centrada na fictícia aldeia algarvia de São Sebastião de Valmares, os cem fragmentos que compõem a história duma estirpe de pequenos proprietários rurais, formada por seis filhos e três noras, uma filha e um genro, três netos e uma neta do patriarca do clã, ganha o molde genérico duma saga tradicional. Entre os longínquos anos da década de 30 e os recentes de 80, a casa inicialmente plena de gente vai-se esvaziando, à medida que parte das gerações mais jovens se vão deslocando como emigrantes para as duas américas, a do norte e a do sul, e o pai, sogro e avô de todos eles é deixado para sempre à espera nunca efetivada do seu regresso ao torrão natal. Terá a companhia do primogénito deficiente, da mulher e da filha/sobrinha, a tal que narrará o destino coletivo de todos, com um destaque especial naquele que a gerara num ato único, consumado numa manta de soldado da Índia, a servir de colchão numa charrete, desenhador de pássaros, pinga-amor, troca-tintas e trota-mundos dos quatro recantos da terra, o legítimo herói/anti-herói dos eventos convocados pela fábula.

Esclarecida a titulação disjuntiva referida, focada por inteiro no tio/pai da voz enunciadora interna, cumpre juntar os sentidos possíveis da opção original, imersa no universo espacial da residência familiar. Erigida num local de paixões fortuitas, experienciadas nas campinas meridionais do país, entre o mar e a serra, i.e., os val(es) e os mares vizinhos, aglutinados na Casa de Valmares. Rótulos formais à parte, perfilhados por editores e tradutores, este testemunho oscilante de primeira/terceira pessoa, proferido por alguém que estando presente age amiúde como se estivesse ausente e não fizesse parte da história em que desempenha sem pausas nem hesitações o duplo papel de protagonista/narradora dos eventos havidos ou imaginados. Neste sentido, a saga, gesta ou fado da família, materializada na dissolução da vida rural tradicional, impressa em forma de letra nas páginas dum romance, que nos a remete para uma realidade de silêncios e ausências vigentes num período histórico recente, do qual persistem ecos ainda audíveis entre nós. Basta estar atento aos tempos de migrações, conflitos e perigos, locais e globais, a flagelar-nos no nosso dia a dia imediato. Aqui, agora e sempre.

22 de outubro de 2024

Deambulações dançadas, declamadas, cantadas e mimadas do coro dramático

Coro de jovens mascarados em frente a um altar de Dioniso.
Pintura de vaso duma cratera de coluna ática de figuras vermelhas, 480 AEC
[Basileia, Antikenmuseum e Sammlung Ludwig]

COROS, COREUTAS, COREGOS & CORIFEUS 

Nos tempos distantes dos poemas homéricos, havia no interior das cidades gregas espaços reservados aos festejos oficiais designados choros (χορός = dança). Os intérpretes dessas práticas religiosas, simbólicas ou miméticas, formavam um grupo variável de coreutas (χορευτές = dançarinos), regido por um corifeu (κορυφαῖος = cabeça de coro) e organizado por um corego (χορηγός = patrocinador).

Com o advento do drama (δραμα = coisa feita), esses cultores de ritos sagrados trocaram a ágora (ἀγορά = lugar de reunião) pelo teatro (θέατρον = lugar de visão). Surgiam no párodo (πάροδος = cortejo de entrada), instalavam-se na orquestra (ὀρχήστρα = lugar de dança) e partiam depois no êxodo (ἔξοδος = cortejo de saída). Hoje em dia, equivaleria ao usual correr das cortinas no início/final da atuação.

A voz coletiva e uníssona entoada pelos comentadores nas tragédias (τραγωδίες = cantos do bode), dramas satíricos (δράματα σατιρικά = cantos de sátiros) e comédias (κωμωδίες = cantos da aldeia) aprenderam a falar, a cantar e a agir, tornando-se gradualmente nos coralistas áticos, de imediato adotados cenicamente pelo classicismo romano antigo e renascentista moderno, caindo então em desuso.

Depois o coro que se limitava a dançar passou a ser o coral que se dedicou a cantar. Deixou de deambular passo a passo no espaço circular da orquestra e ocupou os proscénios renovados dos atuais auditórios erigidos à escala global. Fazem-se ouvir às diversas vozes dum único corpo, distribuídas pelos quatro naipes que formam a sua tessitura sonora, para proveito e deleite de quem canta e encanta.

16 de outubro de 2024

Patrick Modiano: em busca de Dora Bruder, a rapariga judia desaparecida

« On avait imposé des étoiles jaunes à des enfants aux noms polonais, russes, roumains, et qui étaient si parisiens qu'ils se confondaient avec les façades des immeubles, les trottoirs. Comme Dora Bruder, ils parlaient tous avec l'accent de Paris, en employant des mots d'argot dont Jean Genet avait senti la tendresse attristée. »
Patrick Modiano, Dora Bruder (1997)

Tem razão Patrick Modiano ao afirmar que os dez relatos reunidos no Romans (2013), pela Quarto Gallimard, formam uma única obra e a espinha dorsal a todos os demais editados avulso não incluídos na coleta. Segundo confessa, terão sido escritos de modo descontínuo, a registar fragmentos de vida vividos entre outros tantos esquecimentos sucessivos. Os mesmos rostos, nomes e locais saltam duns textos para outros, ininterruptamente, sem sossego, como os motivos duma tapeçaria tecida em momentos criativos de semissonolência, recolhas dispersas a revelarem ecos distantes duma autobiografia pessoal, simultaneamente sonhada e imaginada. Pelo já observado em mais de metade das parcelas consideradas, tudo leva a crer que nas restantes aconteça precisamente o mesmo. A ver vamos em próximas incursões, separadas por breves pausas para recuperar o fôlego.

O sexto título da série não foge à regra, a despeito de não se tratar dum legítimo romance como seria de supor, dada a designação geral registada na capa da seleta. A estrela amarela de David, a questão judaica, a invasão da França pelo Terceiro Reich, a resistência, a Gestapo, a guerra, as prisões arbitrárias, o império do medo e do mal, o predomínio do ódio, as perseguições, os centros de detenção, trabalho e concentração, o genocídio, são elementos omnipresentes neste testemunho humano de factos reais acontecidos num tempo ainda recente. O Dora Bruder (1997) foge às urdiduras tecidas pela ficção, para entrar na da pesquisa multifacetada do percurso factual duma jovem judia obscura trazida à luz do dia através dum autêntico resgate literário de eventos perdidos nas brumas da história.

Um mero anúncio de jornal a pedir informações sobre o paradeiro duma menina de 15 anos de idade, publicado em 31 de dezembro de 1941 no Paris-Soir, é o ponto de partida da longa busca contida numas escassas dezenas de páginas, sobre o destino dramático dessa figura de carne e osso que dá título a uma narrativa feita de papel e tinta. Os contactos fornecidos aos leitores dão ao detetive-escritor improvisado as primeiras pistas sobre o inquérito, que o conduzirão a uma série de documentos oficiais referentes não só à desaparecida como ao dos seus familiares mais próximos ou já com algum grau de afastamento. A reconstituição vai-se processando com o recurso estratégico a suposições, paralelismos e histórias protagonizadas por outros protagonistas igualmente perdidos nos labirintos do mais profundo olvido coletivo e do vazio existencial. Possuem todos eles um nome, um endereço, uma rua, uma casa, um número, muitas vezes desaparecidas depois da guerra, da ocupação germânica e da barbárie nazi.

As memórias dos bairros, mercadoscinemas, cafés, hotéis, praças e arruamentos de Paris servem de cenário ao plano investigativo. Os mais ligeiros indícios, pistas, rumores vão surgindo a conta-gotas. Ao certificado de nascimento, ao registo num internato religioso e às notas de fuga do pensionato, junta-se a ata de casamento dos progenitores, a nacionalidade húngara da mãe e austríaca do pai. Tem ainda acesso a um conjunto limitado de fotos informais, que lhe permitiram extrair algumas conjeturas mais sobre a sua forma de ser e de estar. Dados exíguos que o aproximam a passos largos do final trágico que os conduziu inexoravelmente aos campos de deportação de Drancy, de confinamento de Tourelles e de extermínio de Auschwitz. Pai e filha entraram no comboio da morte a 18 de setembro de 1942, seguidos pela mãe cinco meses depois, a 11 de fevereiro de 1943. E é tudo. A história de Ernest, Cécíle e Dora Bruder termina aqui. Como diria um croupier de casino, les jeux sont faits, rien ne va plus.

13 de outubro de 2024

Nacionalismos & Patriotismos

On a trop souvent tendance à rapprocher les deux attitudes, et à considérer que le nationalisme est une forme accentuée du patriotisme. En ce temps-là - et sans doute à d'autres époques aussi - la vérité était tout autre : le nationalisme était exactement le contraire du patriotisme. Les patriotes rêvaient d'un Empire où coexisteraient des peuples multiples, parlant diverses langues et professant diverses croyances, mais unis par leur commune volonté de bâtir une vaste patrie moderne qui insufflerait aux principes prônés par l'Occident la sagesse subtile des âmes levantines. Les nationalistes, eux, rêvaient de domination totale quand ils appartenaient à l'ethnie majoritaire, et de séparatisme quand ils appartenaient aux communautés minoritaires ; l'Orient misérable d'aujourd'hui est le monstre né de leurs rêves conjugués.
Amin Maalouf, Origines (2004)

10 de outubro de 2024

Flagelos mediáticos secos e molhados

Ramón Castellano de Torres, Cataclismo (2007)

As secas estivais severas começaram a ceder, as primas borrascas outonais chegaram de mansinho. Os incêndios vão e as inundações estão a caminho. Entre rescaldos de flagelos pretéritos e presságios de desgraças vindouras, folgam as costas. Entre o fogo enraivecido e as chuvadas torrenciais, os mass media fazem tréguas passageiras que intercalam com os habituais conflitos, epidemias e cataclismos mil. A guerra das audiências não tem sossego e não de reality shows e telenovelas a toda a hora vive a gente. que puxar um pouco ao sentimento e à lagrimazinha no canto do olho.

As imagens seguintes poderão ferir a suscetibilidade das pessoas mais sensíveis, dizem os pivots de serviço com ar compungido, feito à medida, mas nem por isso desistem de transmiti-las em grandes, pequenos e médios planos. E nem merece a pena mudar de canal, que nos vizinhos o panorama é idêntico. O poder das imagens em movimento é muito forte. As televisões aproveitam-se dessa regalia sobre as rádios e jornais, incapazes de reproduzir com eficácia garantida o deflagrar das chamas de fogo e do desabar diluviano das bátegas de água vistos segundo a segundo no pequeno ecrã.

A caixinha mágica que mudou o mundo nem sempre o tem mostrado na sua melhor faceta. Rendeu-se ao efeito mórbido do catastrofismo, Ampliou o lado negro da vida e aligeirou as restantes tonalidades do espetro cromático criado. A atração sádica das televisões por cenários apocalípticos suscita um clima depressivo nos telespetadores, que parece gozarem dum prazer masoquista com os canais noticiosos especialistas na difusão reiterada das grandes hecatombes naturais e provocadas. Como sói dizer-se, são insondáveis os caminhos que levam à liderança, ou seja, albarde-se o burro à vontade o dono.

5 de outubro de 2024

A esfera emblemática do rei afortunado

Brasão Real e Emblema Pessoal de Dom Manuel I
Livro Carmesim (1502)
[Arquivo Municipal de Lisboa]

Num dia como o de hoje de 1910, implantava-se a República entre nós, a tal que ultrapassado um centenário, uma década e quatro anos bem contados, está a contar-nos de sua justiça. Este evento celebrado desde então com maior ou menor pompa e circunstância dum feriado nacional é do conhecimento geral de todos. Os reis e rainhas e demais corte palatina foram à sua vida para outras paragens e em boa hora levaram consigo muita da parafernália acumulada ao longo do devir histórico em que vigorou. 

Com o advento do novo regime, os acordes do Hino da Carta foram substituídos pelos d'A Portuguesa, a coroa real saiu de vez das insígnias oficiais do país, o azul-e-branco foi trocado pelo verde-rubro da bandeira e a esfera armilar impôs-se como a peça central dos novos símbolos nacionais. Ficaram porém de pedra e cal as medievas cinco quinas e sete castelos no brasão heráldico, com os atributos factuais ou fantasiosos que as diversas épocas que os viram surgir, crescer e fixar lhe quiseram outorgar.

O emblema manuelino foi o último elemento inserido no escudo português, após a sua inclusão efémera no armorial do triplo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Atributo ancestral do saber universal, passou a representar a universalidade do poder régio dos Avis e imperial dos Bragança. Associado à expansão ultramarina lusitana, a esfera emblemática do rei afortunado converteu-se na vocação universal da diáspora portuguesa. O poder monárquico a adotou o poder republicano a fixou.

Esfera Armilar 1503