
«Já nessa época o seu nome não me era desconhecido. Sertório tinha então vinte e um anos e uma presença física extraordinária: uma força da natureza modelada pela alma, pensei enquanto o observava discretamente. Um corpo vigoroso que transmitia uma impressão de resistência e agilidade; um rosto que parecia talhado em pedra a golpes de espada. Nesse rosto, a única expressão estava nos olhos grandes e cinzentos. Eram eles que riam, que se zangavam ou se apiedavam. Em qualquer caso, inspiravam confiança.»João Aguiar, A hora de Sertório (1994)
A história do mundo é feito de invasões. As que se verificaram num tempo anterior aos registos escritos auxiliares da nossa memória só são detetados com alguma dificuldade pelos vestígios que deixaram aquando da sua passagem/permanência pelos espaços que hoje em dia ocupamos. Muitos deles totalmente estranhos ao nosso modo de os explicar com todo o rigor exigido para afastar os fantasmas do mistério. Depois há as outras migrações efetuadas com um caráter mais claro de fixação perdurável nem sempre conseguida. No caso especial da mais ocidental península eurasiática, rezam os anais antigos e recentes ter sido visitada em datas nem sempre precisas por povos que nos habituámos a designar de Fenícios, Gregos e Cartagineses, mas também de romanos, bárbaros e mouros entre alguns mais geralmente referidos nos manuais escolares em nota de rodapé. Dizem também que entre as diversas tribos resultantes da miscigenação de Celtas e Iberos teriam surgido os Lusitanos, eponímia épica por excelência para designar os descendentes de Luso. Não custa nada aceitar em termos simbólicos esses mitos e lendas ancestrais associados ao nosso devir coletivo, que em dada altura dos nossos Séculos de Ouro até inspiraram Camões a cantar as suas armas e barões assinalados.
Os grandes fluxos periódicos de massas, ocorridos em momentos de crise profunda, nunca se dão sem desencadearem um conjunto de rebeliões dos nativos contra os estrangeiros invasores. Então como agora, nada mudou no quadro do comportamento humano ao longo dos tempos. João Aguiar aproveitou-se duma destas ocasiões de instabilidade e assenta arraiais na recriação ficcionada das guerras de ocupação romana da Hispânia, para pintar um díptico verbal da resistência lusitana que lhe foi movida, primeiro n'A voz dos deuses (1984), focado na figura incontornável do caudilho nativo Viriato, seguido uma década depois n'A Hora de Sertório (1994), centrada no general rebelde nomeado no título do segundo relato da série. Uma sucessão altamente improvável representada no teatro dos eventos bélicos travados nos três quartos de século que antecederam a unificação completa do espaço ibérico. Tal como considera o autor nas notas finais do livro, a figura de Quinto Sertório (122-72 AEC) insere-se numa espécie de «folclore histórico» português vertido no partidário dos povos bárbaros levantados contra a grande potência imperial antiga, quando na realidade se limitou a alinhar nas fileiras oponentes da facção política do ditador Sila.
A estrutura organizativa deste segundo painel do díptico novelesco é bastante mais complexa do que a usada no primeiro. O fluxo narrativo passou a repartir-se por três testemunhos escritos distintos, que se completam na diversidade dos episódios convocados a um ritmo cronológico. Olhares lhes podemos chamar, constituindo cada um deles uma espécie de «novela» autónoma de dimensão mediana, partilhando um fio condutor comum aos dois «romances» que formam o retábulo gizado com palavras. Os fragmentos autobiográficos dos emissores internos cruzam-se esporadicamente com o percurso de vida seguido pelo general romano amotinado, tanto na península itálica como na ibérica, funcionando grosso modo como um muito breve esboço biográfico da figura mais importante da efabulação. A prestação inaugural foi confiada a Euménio de Rodes, um filósofo fictício grego estabelecido em Roma, que nos legou um conjunto de fragmentos de reflexão pessoal datados de 95-79 AEC. Seguem-se-lhe os escritos de Lúcio Hirtuleio, descrito nas Notas finais como um estratega conceituado da Guerra Sertoriana (80-72 AEC) e o mais fiel colaborador do seu líder. O derradeiro bloco deve-se a Medamo, referido por Plutarco e ficcionado por João Aguiar, para documentar o assassinato do herói, nos últimos instantes da Hora de Sertório.
O encontro casual dum rolo de papiro nas ruínas do santuário de Endovélio, exarado pelo seu antigo guardião, abre as portas a um romance histórico tradicional, decalcado nos cânones vulgarizados a partir da sua fase romântica oitocentista. Promove ainda a ligação discursiva entre os dois vultos maiores da resistência lusitana à ocupação latina, através do narrador singular do painel mais antigo do díptico e do narrador charneira do mais recente. Este achado faculta-nos, deste modo, a interface estratégica entre os itinerários vitais do portador da insígnia do touro e do homem da corça, i.e., de Viriato e Sertório. A busca sistemática pela verosimilhança genérica exigida e viabilizar a reconstituição criteriosamente encenada. Assim se representa de modo credível uma panóplia documentada de factos fingidos mesclados num repositório de factos efetivamente acontecidos. Onde as lacunas históricos se instalaram ao longo dos tempos nos anais oficiais conservados, a verve criativa romanesca encarrega-se de as preencher plausivelmente com todo o engenho e arte gerado ao sabor das malhas da imaginação literária.
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