12 de março de 2024

Camões: as armas e os barões assinalados dos filhos de Luso

       Eternos moradores do luzente
Eʃteliƒero polo & claro aʃʃento,
Se do grande valor da ƒorte gente,
De Luʃo, não perdeis o penʃamento,
Deueis de ter ʃabido claramente,
Como he dos ƒados grandes certo intento
Que por ella ʃeʃqueção os humanos,
De Aßirios, Perʃas, Gregos & Romanos.
Luis de Camoẽs, Os Lusiadas
(Cant. I, est. 24, fol.º 5)

Fará hoje precisamente 452 anos que Luís Vaz de Camões viu sair dos prelos de António Gonçalves a primeira edição d'Os Lusíadas (1572), aquela que as normas de referência bibliográfica assinalam com a sigla Ee/S ou E/D, tendo em atenção o pormenor do pelicano da xilografia do frontispício ter a cabeça voltada para a esquerda [Sinistra] ou para a direita [Destra] e corresponder à alternância do «E entre / Entre» das duas versões referidas [I.1:7]. Minudências à parte, é verdade que a folha de rosto só refere o mês e o ano de publicação, mas a dar fé no Alvará Régio que concedeu ao autor a tença anual vitalícia de 15000 réis a partir de 12 de março de 1572, leva-nos a inferir ter sido essa a data precisa da sua impressão.

Sobre o poema se disse muito e outro tanto fica ainda por dizer. Dizem ser o canto épico de todos os portugueses, quando o poeta só se propôs cantar as armas e os barões assinalados. Acrescenta ainda as memórias gloriosas dos reis que alargaram o império e daqueles que pelos atos valorosos feitos em vida se foram da lei da morte libertando. Por outras palavras, canta a glória dos heróis viris e faz tábua rasa da fama feminil das heroínas. Saem de cena as donas e donzelas também elas descendentes de Luso, o filho ou companheiro de Baco, bem como toda a arraia-miúda posta à sombra do peito ilustre lusitano. Ecos perceptíveis de ressonância latina, recolhidos nas fontes clássicas postas então à sua disposição.

Constitui um lugar-comum considerar Camões o expoente máximo do Renascimento português, pelo menos se o fizermos no sentido lato do termo. Para ser mais rigoroso, talvez fosse preferível redefinir melhor o período histórico-cultural em que viveu e remetê-lo para as fronteiras mais precisas do Maneirismo literário. Na idealização d'Os Lusíadas, o vate lusitano socorre-se do contributo romano da Eneida de Vergílio que, por sua vez, se inspirara na Ilíada e na Odisseia de Homero. Compõem as suas epopeias à maneira uns dos outros. Com boa vontade, até o próprio aedo jónico pode ter tido acesso a uma ou outra versão das façanhas mesopotâmicas de Gilgameš.

Se uma Epopeia [εποποιία] é um conjunto de Epos [επος], de relatos orais de origem lendária, unidos ao mito através do canto, então todos os casos referidos partilham dessa regra genérica, só divergindo na ânsia legítima de se superarem. Os Troianos vencidos pelos Aqueus, vingam-se destes em tempos históricos, quando os Latinos filhos dos primeiros derrotam os Helenos herdeiros dos segundos. O Império Grego sucessor do Assírio e do Persa acaba também ele por ser conquistado pelo nascente poder imperial Romano. Nada que o Príncipe dos Poetas Lusitanos não tenha referido na epopeia que o celebrizou, afirmando ter a vitória definitiva do mundo moderno sobre o antigo sido obtida pelo engenho e arte dos filhos de Luso.

Nos dias em que se comemoram os Quinhentos Anos do autor d'Os Lusíadas, seria bom começar a depurar a sua vida vivida das fábulas que lhe estão associadas e lhe dão corpo e colorido. Deve ser sina dos criadores laureados dos heróis épicos da imaginação. Do rapsodo da cólera de Aquiles e das odisseias de Ulisses nada se sabe, do cantor das façanhas marítimas de Vasco da Gama pouco mais ou nada. A meio milénio de distância, já seria altura de passar dos mitos e contramitos do Trinca Fortes, Pinga Amor e Cavaleiro da Fortuna aos factos de vida de facto vivida por aquele que com uma mão na espada e noutra a pena chegou até à nossa memória presente rumo às futuras perdidas na bruma do tempo.

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