17 de janeiro de 2015

Um keffiyeh árabe em Malmö

KEFFIYEH

o protagonista da história 28 anos passados


A primeira vez que visitei a Suécia fi-lo a partir da Dinamarca, numa manhã radiosa do verão de 1986. Atravessei o estreito de Öresund pelo ferry que faz a ligação entre Copenhaga e Malmö. O espaço Schengen ainda estava por criar e as formalidades nas fronteiras obedeciam a uma burocracia particularmente pesada. Senti-o assim que pus os pés na terra de Ingmar Bergman. Fui empurrado sem cerimónia para um cubículo exíguo, onde uma nativa fardada de polícia me revistou de alto a baixo, sem deixar nenhum recanto por investigar. É que nesse mesmo ano, o primeiro-ministro Olof Palme tinha sido assassinado e o meu bronzeado meridional e o keffiyeh árabe que levava ao pescoço me indiciaram como o provável autor do homicídio. Escapei com a ajuda duma amiga minha iniciada nos meandros sinuosos da diplomacia escandinava.

A minha segunda visita ao país de Alfred Nobel ocorreu numa manhã chuvosa do verão de 2000. Voltei a usar um ferry para passar da Helsingør dinamarquesa à Helsingborg sueca, as duas sentinelas do estreito que liga o tranquilo mar Báltico ao agitado mar do Norte. Nada a registar na travessia. Nada a registar na fronteira. Pelo sim pelo não, deixara o keffiyeh comprometedor em casa. Fui um desconhecido entre desconhecidos. Recordo-me dum montão de garrafas repletas de cerveja à partida da cidade do Hamlet de Shakespeare e num montão de garrafas vazias à chegada à cidade dos vikings das lendas nórdicas. O to be or not to be das duas cidades vizinhas e quase gémeas pode resumir-se, tout court, à interpretação peculiar da lei-seca. Numa é ignorada e bebe-se quando se quer, na outra é respeitada e vai-se beber à terra alheia.

Os claros-escuros do ser e do parecer estão traçados em dois flashes escandinavos, unidos por um braço de mar e três lustres de permeio. Agora que tantos andam por aí a dizer Je suis Charlie, dá vontade de arrumar de vez o slogan da moda neste início de 2015 e exercer o livre-arbítrio de contrapor Je suis ce que je suis, ou, se preferirmos, I'm not perfect, but don't try to change me. Na próxima vez que visitar o país de Carolus Linnaeus, gostaria de levar comigo um keffiyeh nos ombros e uma cerveja na mão, sem ter receio de ser o que sou e nada mais. Mostrar que as aparências iludem, que nem tudo o que luz é ouro e que o hábito não faz o monge, i.e., nem todos os morenos são árabes, nem todos os árabes são muçulmanos, nem todos os muçulmanos são terroristas e muito menos homicidas de figuras públicas ou anónimas. Det är allt!

7 comentários:

  1. Experiências sui generis que nos marcam... O interessante é que eu, cabo-verdiana com ar argelino / marroquino / egípcio, nunca tive qualquer problema nos países nórdicos, antes pelo contrário... Nem na Inglaterra, que tanta fama tem de ser racista! No entanto, sei de primo meu, de pele bem clara e cabelos lisos, que foi maltratado na Noruega com ações bem racistas, como prendas inconcebíveis na sua caixa de correio... Eu, entretanto, tenho azar com Paris, capital cultural que adoro! Uma vez, em serviço como jornalista, entrei com um colega num restaurante para almoçar. O meu colega é branquinho e de olhos claros e falávamos entre nós português. Pois tentei sentar-me junto à janela envidraçada, nesse restaurante ainda às moscas, quando fui impedida pelo empregado, que queria que eu fosse sentar-me mais longe da entrada. Perguntei se as mesas estavam reservadas. Que não, mas não podia sentar-me junto à janela. Pois, olhei o senhor de alto abaixo e dei meia volta. Porquê? Esta mestiça tinha sobre os ombros um lindo xaile marroquino, para cujo uso a minha tia que lá vive me tinha avisado ser contraproducente pois me tomariam por norte-africana, aviso ao qual, é claro, não liguei. Eu nem queria acreditar! Também já tive cenas em restaurantes, nas casas de banho, onde os homens entram com o maior despudor na das senhoras e nem sequer olham para a nossa cara quando saem, tranquilamente... Mas o mais interessante foi em Marrocos, quando lá cheguei com um grande grupo em excursão... Fui revistada umas três vezes à entrada, tendo sido obrigada a identificar o meu local de trabalho (o cartão da empresa serviu-me então...) e a tirar uma foto com a minha máquina para provar que não havia problemas (se houvesse, teríamos todos ido aos ares...). À saída do país, a cena foi igual... Por este cantinho à beira-mar plantado, também passei por cenas a que já nem dou importância. Mas houve uma cena que me marcou para sempre: estava a regressar de Espanha com o meu filho, quando o "autopullman" parou para um lanche. Eu não tive problemas, mas um jogador de futebol da equipe de Faro, por ser negro, foi tratado abaixo de cão pelo dono, que gritava a plenos pulmões que não atendia "macacos" na sua casa... No meio de tantos estrangeiros, foi uma vergonha para o Alentejo profundo! Todos nós nos solidarizámos e dividimos o lanche com ele.
    É assim, infelizmente: somos avaliados pelo que julgam que somos pela nossa aparência, seja lá onde estivermos. O ser humano é mesmo imperfeito!

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    1. Nunca tive problemas racistas a sério em nenhum lado, mas já fui confundido com outros, fruto do desconhecimento de quem observa. Já passei por italiano em França e espanhol em Itália. Na Suécia passei por magrebino. Noutros locais por cigano ou mexicano. Por português é que só costumo passar dentro das fronteiras nacionais...

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  2. Muito bom e certeiro, gostei.

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  3. Foi ainda nos anos 60, num Verão, que fiz essa mesma viagem de Copenhague para Malmoe... As impressões são idênticas e lembro-me que adorei... tal como gostei de as recordar com o seu relato! Obgda

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  4. Gostei muito! Quanto às garrafas ou latas vazias entre uma cidade e outra , eu também senti o mesmo....numa bebe-se pelas duas e na outra..dorme-se.

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  5. Parabéns pelo texto! Adorei especialmente o último parágrafo. Sem dúvida, "je suis ce que je suis" é o melhor slogan, nada de sermos avaliados por aquilo que parece evidente aos outros.

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  6. Generalizei o tema e falei em racismo, mas é claro que no caso da França não foi a questão da cor da pele mas sim de antagonismos históricos, assim como em Marrocos foi o problema da droga que se levantava. Já fui confundida por brasileira em Torremolinos, por egípcia em Londres, por britânica no Funchal por um súbdito da Sua Majestade, por francesa no castelo de Chantilly, etc, etc... Em qualquer dos casos, a maior parte destas situações assentam no julgamento do próximo apenas pelo seu aspeto.

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