«No meio da Vila que crescia, o Central, que já se chamara República, ficava na mesma. A bica de saco aguentava bem a ofensiva do café expresso.»
Álvaro Guerra, Café Central (1984)
É sempre com uma certa dificuldade que me refiro ao regime político que vigorou em Portugal entre as duas revoluções militares de sinal contrário mais marcantes da centúria passada, a nacionalista do 28 de maio de 1926 e a democrática do 25 de abril de 1974, com a denominação clássica e cronológica de Segunda República, quando os próprios magistrados máximos do país preferiram a etiqueta protocolar bastante mais cómoda de chefe de estado. O mais paradoxal da situação é que nenhum deles deixou de se considerar presidente da república de um muito discutível Estado Novo. Alguma razão haveria, com certeza, para terem alimentado durante tanto tempo o equívoco. Pouco importa apurar aqui as razões dessa ambiguidade tão peculiar de lidar com os títulos oficiais da res publica. Não seria o lugar nem o momento mais oportunos para proceder a uma tal pesquisa. Os historiadores que o façam se para aí estiverem virados e se acharem que ainda merece a pena nos dias que correm.
Álvaro Guerra também não chamou à colação essa problemática de somenos importância para a consecução do romance. Chamou-lhe Café Central (1984), adotando o mesmo nome com que o galego Manuel Maria rebatizara prudentemente o Café República, ao aperceber-se para que lado tinham começado a soprar os ventos que os conspiradores de Braga tinham levado para Lisboa, a dois passos mal contados do pacato lugarejo da borda-d’água ribatejana que escolhera alguns anos atrás para levar uma vida tranquila e sem sobressaltos de maior. Decisão sábia que lhe permitiu manter o estabelecimento de portas abertas durante toda essa época conturbada de ditaduras disfarçadas e de o transmitir depois ao filho como herança. O cronista oficial da «Trilogia dos Cafés» situa essa mescla de efemérides fingidas e verdadeiras entre o final da segunda guerra mundial e o movimento dos capitães, balizas históricas de particular importância tanto a nível global como local, a que dá o subtítulo sugestivo de Folhetim do mundo vivido em Vila Velha (1945-1974).
O painel intermédio do tríptico mantém a estrutura narrativa inaugurada no anterior. As personagens encontram-se agrupadas em núcleos familiares representativos das diversas forças vivas do burgo. As casas, as herdades, as quintas são as mesmas. Só o estado de conservação de algumas delas e a saúde dos donos se vão arruinando. Nasce-se, vive-se e morre-se como em toda a parte. Umas vezes na paz podre da metrópole, outras nas guerras distantes do ultramar. As alterações são sempre insignificantes e só são arroladas para dar a ilusão fugidia de progresso. A pharmácia passa a farmácia e a Pvide a Pide e depois a DGS, as grafonolas são rendidas pelos pick-up e a mercearia pelo supermercado. A União Nacional é revezada pela Ação Nacional Popular e os ditadores recuperam o nome. A liberdade anunciada pelo Santa Maria não se confirma e a aventura de Humberto Delgado culmina de forma trágica sobejamente conhecida. Salazar cai da cadeira e Caetano sobe ao poleiro. Promessa ilusória da muito falada renovação na continuidade, exaustivamente aclamada pelos canais oficiais postos à disposição do poder instituído, com algum afinco demagógico nas conversas em família dos serões televisivos. A primavera marcelista acalentada por alguns revelou-se uma miragem logo desfeita. A questão colonial vive à sombra dos seculares fumos das índias e ventos do império. Só o narrador atualiza a sua forma especial de contar os factos. A terceira pessoa alterna com a primeira, a objetividade neorrealista luta com a subjetividade neorromântica, o ponto de vista dos intervenientes internos da ficção rivaliza com as opiniões pessoais do autor. Através dos romancistas encartados da crónica, não perde a ocasião de divulgar as novíssimas estéticas do realismo fantástico latino-americano que as gerações seguintes de escritores reais acabariam por assimilar e consagrar entre nós.
Lido o livro na altura em que se festeja o centenário da queda da monarquia e advento da república, em que voltamos a eleger um novo presidente por sufrágio universal, sem ambiguidades nem constrangimentos, ficamos com uma sensação amarga de vazio quanto ao peso dado neste segundo folhetim ao regime fundado em 1910. A liberdade então conquistada é encerrada no forte de Peniche, no presídio de Caxias, nos curros do Aljube, nos calabouços do Governo Civil, no campo do Tarrafal, nas cadeias da Pide, nas picadas perdidas de África. A consolação é que a crónica termina na madrugada do dia dos cravos. Aquela que nos devolveria o direito de restaurar a legitimidade do regime. Mas isso é já o cenário a pintar no terceiro café da série. Entretanto, ficamos com a derradeira pincelada desta saga de sagas, com a representação da cena patética do sorriso duma das protagonistas feito com os olhos rasos de água, a provar-nos que nem sempre se chora de dor ou de tristeza. A alegria da mudança tem este efeito purificador que se expressa através das lágrimas incontidas duma felicidade anunciada ou simplesmente adiada...
NOTA
Este texto é o segundo de três que publiquei no Pátio de Letras, no ao ano em que a República celebrava o seu centenário. Já trouxe para este espaço o Primeiro Folhetim, a que se segue agora o Seguinte. A data escolhida para a reposição foi ditada pelo calendário histórico deste país, que em tempos também passou por uma experiência de repressão mais ou menos consentida...
Uma resenha fantástica, Prof.! Leva-me a reviver entre linhas os acontecimentos vivenciados aquando da leitura da Trilogia dos Cafés como se fosse hoje... A história do ser humano repete-se e neste cantinho à beira mar com uma frequência exasperante. Seria bom que pudessemos derramar em breve lágrimas de alívio por uma mudança radical na cultura da já estafada máxima "homem é o lobo do homem"...
ResponderEliminarNo dia em que o atual inquilino do Palácio de Belém for tratar da sua vida e deixar a nossa em paz, republicarei o derradeiro episódio da «Trilogia dos Cafés» aqui neste espaço. Provavelmente o homem continuará a ser o lobo do homem, mas talvez seja a hipótese de arejar a casa e começar a tal mudança radical na cultura, sobretudo a política, que tão madrasta tem sido da coisa-pública também conhecida por república...
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