Jean Siméon Chardin, La brioche (1763) |
As vacas gordas e as magras
No tempo das vacas gordas, uma mediática figura do jet set nacional, colunável, habitué das revistas cor-de-rosa, com apelido sonante de Espírito Santo e petit non de Tininha, terá dito que gostava muito da herdade da família, pois se vivia ali em «estado mais puro», era como «brincar aos pobrezinhos». A declaração ecológica de sabor pastoril caiu mal nos ouvidos da plebe sem pedigree na linhagem e arcádias pós-modernistas no além-Tejo, andou de boca em boca e até mereceu um pedido de desculpa formal da zagala brincalhona a todos os atingidos pela boutade malsucedida. Depois acabou por cair no esquecimento.
Perdi o texto da reportagem do Expresso, mas a frase vale por si. Dispensa pormenores agora esquecidos e convocou-me à memória outras mais que duas testas coroadas terão dito no seu tempo. A primeira é atribuída a Santa Isabel, infanta de Aragão e rainha de Portugal. Conta a lenda que quando o real marido lhe perguntou o que levava no regaço, lhe terá respondido: «São rosas, senhor, são rosas». E os pães que levava para os pobrezinhos de todos os dias, transformaram-se logo ali, talvez por obra e graça do Espírito Santo, em rosas. Milagre disseram todos à vez. Milagre continuam a evocar as vozes crentes há mais ou menos setecentos anos.
A segunda, de sentido diametralmente contrário, terá sido proferida nas vésperas da Revolução Francesa por Maria Antonieta de Habsburgo-Lorena, arquiduquesa de Áustria e rainha de França. Esta terá observado duma das janelas do palácio de Versalhes o povo amotinado de Paris, que viera queixar-se ao rei do aumento do preço do pão. Segundo as testemunhas presenciais da ocorrência, a soberana terá então encontrado a solução eficaz do problema, sem recorrer à intercessão do Espírito Santo, dizendo: «S'ils n'ont plus de pain, qu'ils mangent de la brioche»; o que, em português legítimo, dará algo como: «Se não têm pão comam brioche».
Em tempo das vacas magras, vão-se os anéis e fiquem os dedos. Os milagres por medida passaram a ser parra que já deu uva e a graça virou desgraça. A herdade da Comporta foi posta à venda. O refúgio hippie-chique de bucolismos bancários continua à venda. Falta saber onde é que os Espírito Santos vão encontrar um ar mais puro para continuarem a brincar aos pobrezinhos. Ironia trágica de quem queria parecer o que não era e agora é obrigada a ser o que outrora queria parecer. Heróis num dia, vilões no outro. A queda dos ídolos com pés de barro. A descida aos infernos depois da subida aos olimpos. Miragens de efémero. A vã glória de mandar...
Era capaz de apostar que já tinha lido o texto... Mas é sempre um prazer (re)ler os teus artigos, sempre plenos de ensinamentos literários, enquadrados em acontecimentos que a todos relembram lições históricas. A fogueira da vaidades é na realidade intemporal; o homem nunca se cansa de fazer figura de tolo quando se sente com a mão no poder...
ResponderEliminarO texto foi composto no dia em que o tornei público. É provável que já tenha tocado algures os tópicos agora convocados pelos «faits divers» mediáticos que todos os dias nos são mostrados, em que as tais fogueiras de vaidade fazem questão em marcar a sua omnipresença. Lições que o devir histórico nos vai transmitindo quer queiramos ou não...
EliminarTexto delicioso, devidamente complementado por uma bela foto. Já quanto à família referida, não acredito que tenham ficado mal, eles recuaram, tentando passar despercebidos, um dia voltarão...
ResponderEliminarNão duvido um só momento do que afirma. Continuarão a brincar aos pobrezinhos num cenário momentaneamente diferente. Depois regressarão se é que chegaram a partir. Eles ou outros por eles. E assim o pão e o brioche se vai repartindo de acordo com os ventos que vão soprando...
EliminarGostei imenso do seu texto, como sempre. Quanto aos Espíritos(estes e muitos outros que por aí andam)....descansemos, continuarão a apanhar ar puro e a comer brioches, santolas...e outros malvados bichos.
ResponderEliminarSe eu fosse mauzinho, até lhes desejava um indigestaozinha ; mas com até sou boa pessoa, só desejo que vão comer o que é deles e nos deixem a nós em paz...
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