«Quando as meninas | fitam o nada | de olhos vagos || Uma brisa cruel | vacila e sussurra | no seu peito || Estão a ver um anjo | – imagino || Mas as mães | desesperam»Maria Teresa Horta, Meninas (2014)
Quando soube que Maria Teresa Horta estava prestes a publicar uma coletânea de contos intitulado Meninas (2014), associei-o instantaneamente ao quadro homólogo de Diego Velázquez, Las meninas (1656), obra maior do barroco peninsular seiscentista, onde o pintor sevilhano de origem portuguesa representara, numa tela de grandes dimensões, a família de Filipe IV das Espanhas, já então despojado da coroa dos reinos e senhorios de Portugal. Aí capta, com o olhar atento de quem sabe ver e gosta de o mostrar, a visita informal dos monarcas hispânicos à oficina palatina do artista, centrada na figura radiosa da infanta Margarida de Áustria e das suas açafatas ou meninas. Uma mão cheia de figuras reais eternizadas a óleo e registadas todas elas nos anais oficiais da Casa de Áustria e das suas aliadas europeias.
Após o início da leitura-contemplação do painel desenhado com palavras, o déjà vu muda de rumo e instala-se nas páginas percorridas há trinta anos num texto de Maria Isabel Barreno, Célia e Celina (1985), protagonizado por duas mulheres-meninas que dão corpo e nome à obra. Nas etapas seguintes da viagem, já estou na companhia mais remota ainda de Maria Velho da Costa e das três habitantes das Casas pardas (1977), mulheres que em tempos também foram meninas e nos ajudam a traçar, como as restantes, uma vasta galeria de heroínas de todas as idades, marginalizadas no dia-a-dia e recuperadas para a vida pela arte de contar das «Três Marias». As tais que compuseram em conjunto e no feminino as Novas cartas portuguesas (1979), baseadas no testemunho epistolar seiscentista de sóror Mariana Alcoforado e de muitos outros percursos dramáticos dos nossos e de todos os tempos.
Em entrevista dada recentemente ao Notícias Magazine, a contista revela-nos alguns segredos destas trinta e duas meninas desenhadas em prosa e uma delineada em verso, repartidas por duas secções ou galerias. Na primeira confessa haver posto muito de si mesma nos testemunhos de vidas reinventadas pela ficção e na segunda uma porção significativa da sua própria forma de ser e estar no mundo. Considera-se uma contadora de histórias a que deu inteira liberdade, depois de ter passado por dezassete anos de psicanálise intensiva para fazer a catarse da infância. Nesse período de tempo de purgação planificada, de reencontro com as mulheres tutelares da família, reservou treze desses anos para conversar, à distância de dois séculos e meio, com a Condessa de Oeynhausen, a Alcipe das arcádias literárias, mais conhecida por Marquesa de Alorna, a sedutora de anjos, poetas e heróis, a avó em quinto grau da prosadora-poetisa, que retratou em forma de romance n’As luzes de Leonor (2011). Ecos mais ou menos distantes, mais ou menos próximos duma figura iluminada das letras portuguesas e que, agora, voltamos a encontrar plasmada num ou noutro flash rápido deste conjunto de relatos curtos arrumados segundo os caprichos da memória.
Impossível identificar neste espaço restrito de notas soltas todos os fragmentos narrativos convocados pela colecionadora compulsiva de palavras. Todos eles representam uma situação concreta de amor/ódio, vida/morte, sonhos/pesadelos duma única artífice de coisas feitas com uma multiplicidade de nomes. Míticos, quase todos, distribuídos pelos dois rios matriciais da cultura greco-romana e judaico-cristã. Lilith, Lucinha, Matilde, Beatriz, Mónica, Raquel, Laura, Sara, Branca, Eurídice, Dulce, Cassandra, Carlota, Esther, Lívia, Íngride, Rute, Teresa e muitas mais. Meninas num universo de adultos, formado por homens e mulheres. Maridos, amantes, pais/padrastos, dum lado; irmãs, avós, mães/madrastas, do outro. Um percurso pela mundividências da condição humana nos seus mais íntimos pormenores, balizados entre o vir a ser e o deixar de estar, entre o nascer e o perecer, entre o tudo e o nada. Uma combinação caleidoscópica de imagens captadas ao sabor do momento por uma profusão de vozes gritadas/ciciadas pelos eus e tus do discurso, atualizadas sempre por uma ela/elas singular e plural. Interpretes, todas elas, de um ou outro caso de desobediência, assombro, transformação, resgate, fatalidade, perdição, solidão, abandono. De Inocência perdida e sem culpa. O abismo, a ilha, a cidade, o mar, o calor, o eclipse estão todos reunidos na infância destas meninas-mulheres à espera da companhia dos leitores, ouvintes atentos das histórias de vida que a autora tem para nos contar, com toda a mestria que lhe conhecemos e reconhecemos. Aquela que os artistas põem em tudo aquilo que criam e nos oferecem cada dia. Incondicionalmente.
Uma mestria aqui revelada nesta brilhante recensão, da autoria de quem domina a arte de bem escrever. Um prazer que bem cultiva e me reaviva o gosto pela leitura. Não tenho lido Maria Teresa Horta e este texto abre-me novas janelas que tenho de abrir brevemente. Obrigada pela partilha, Prof.!
ResponderEliminar