29 de agosto de 2015

Milan Kundera, os contos e recontos da insustentável leveza do ser

«Její drama nebylo dramatem tíhy a lehkosti. Na Sabinu dopadlo nikoli břemeno, ale nesnesitelná lehkost bytí.»
Milan Kundera, Nesnesitelná lehkost bytí (1984)
Milan Kundera inicia A insustentável leveza do ser (1984) com uma reflexão filosófica sobre o mito do eterno retorno. Contrariamente ao afirmado por Nietzsche, defende que a vida se vive uma vez, numa trajetória linear imutável. Assemelha-se a uma sombra e é desprovida de peso. Os livros, em contrapartida, podem ser indefinidamente visi-tados em movimentos circulares de nascimento-morte das perso-nagens inventadas pelos autores. Assim tenham leitores para lhes dar a ilusão de possuírem uma existência real. Foi o que aconteceu comigo e com a obra-prima deste escritor naturalizado francês, por lhe ter sido retirada a naturalidade checoslovaca no país em que nasceu. Fi-lo há cerca de três décadas e voltei a fazê-lo agora. De permeio ficou a queda do Muro de Berlim. Fiel da balança duma Europa dividida em blocos. Um mundo reduzido a um maniqueísmo primário. Os bons de um lado e os maus do outro. A dificuldade está na escolha. O intervalo de espaço-tempo cavado pelo devir histórico desenhou leituras diferentes situadas entre as sucessivas levezas do ser de que somos feitos no dia a dia que vamos pontuando.

O fluxo narrativo assenta arraiais na capital dum país nascido após o desmembramento do império austro-húngaro no final da primeira guerra mundial. Por momentos muda-se para Zurique. Breve parêntesis entre dois flashes cénicos ancorados no antes e depois da Primavera de Praga (1968). A cegueira dos coprotagonistas do drama levou-os a abandonar conforto da Confederação Helvética pelas incertezas da Federação Checoslovaca. A ironia trágica dos seus destinos é marcada pelas referências constantes ao percurso mítico imaginado por Sófocles no Rei Édipo. Os diversos episódios e estásimos, enquadrados na introdução-párodos e êxodos, num total de sete blocos, como na criação bíblica do cosmos, são substituídos na versão diegética pelos sete partes que dão corpo ao relato. A teoria e a prática de contar e recontar uma infinidade de vezes o mesmo itinerário essencial-existencial como se se tratasse dum caso diferente. Original. Ilusões em que o universo literário é mestre. A unidade e diversidade das ações humanas a serem atualizadas pelos pontos de vista imaginados pelas personagens que dão corpo à ficção e que poderão ser entendidas como possibilidades não concretizadas da instância real que as imaginou.

As histórias individuais-partilhadas dos atores em cena são pensadas como um kitsch político em forma de romance, que a entidade de-miúrgica se encarrega de definir nos intervalos discursivos con-cedidos aos destinos cruzados dos heróis/anti-heróis convocados. Tomás, Teresa, Sabina, Franz e Karenine, dois homens, duas mulheres, um cão e muitas vidas em comum. Poderíamos arrolar outros nomes mais até perfazer o número cabalístico selecionado nos versículos iniciais do Génesis judaico-cristão. Associá-lo, como faz a tradutora portuguesa no Posfácio da edição consultada, ao total de notas usadas nas partituras musicais. O Beethoven citado e comentado bastas vezes na trama ficaria eternamente grato pelo símile encontrado. Trata-se duma leitura feita com o engenho e arte com todo o peso que as palavras pedidas emprestadas ao autor-narrador recenseado lhe concedem. Passamos o tempo a preencher espaços com as palavras dos outros como se fossem nossas. Acontece que, de facto, até são. A ordem que as une é que varia. Vou cometer o mesmo defeito/qualidade de linguagem para registar mais um septenário simbólico composto de modo binário para definir a própria condição humana subjacente que nos liga a todos através da comunicação verbal falada e escrita: necessidade e contingência, fidelidade e traição, realidade e sonho, corpo e alma, peso e leveza, uno e múltiplo, força e fraqueza.

A Revolução e o Divórcio de Veludo já lá vão. A separação absoluta da Chéquia e da Eslováquia em 1993 transformou-se numa reunificação relativa através da adesão à União Europeia em 2004 e a todas as entidades comunitárias que lhe estão associadas. As fronteiras que dividiram povos foram substituídas por outras que Milan Kundera não podia imaginar na década de oitenta. Os inimigos de então confundem-se com os amigos de agora. E é neste contexto que o universo dos recetores das histórias forjadas se sobrepõem aos universos ficcionados pelos respetivos emissores. O tempo circular das personagens que habitam nos livros é questionado pelo tempo linear das pessoas que os leem. A sobrevivência duma obra depende das clivagens traçadas entre o real das contas-do-rosário já rezadas e o imaginário do faz-de-conta dos fadários por cumprir. À distância confortável de três décadas, a viagem pela insustentável leveza do ser sobreviveu às vicissitudes da história e ganhou sentidos adicionais. A maturidade que entretanto chegou lá terá a sua culpa no cartório. E assim a compaixão da leitura se altera em paixão pela escrita. Incondicional.

6 comentários:

  1. Kundera escreveu e reescreveu este livro várias vezes, antes e depois de 1984, com vários títulos mas sempre sobre a a solidão e a fragilidade do indivíduo perante os acontecimentos da vida e as convulsões sociais.
    Magnífico, mas irrepetível.

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  2. Eu continuo a ler-reler (sempre com proveito) pela versão de 84, vertida para português em 85... E de Kundera não conheço mais nada... um dia destes ainda vou à descoberta doutras viagens...

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  3. Gostei tanto de ler este livro ! De vez em quando volto a ele...está na minha mesa de cabeceira.

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  4. Das ficções que li - e ainda tenho reler - de Kundera, todas me agradaram. Deste título a "O livro do riso e do esquecimento", à "A valsa do adeus" e " A imortalidade", todas me seduziram pela sua arte inventiva desenvolvida com rigor.
    O filme conseguiu captar o essencial do enredo, trazendo-me uma análise bem lúcida sem descurar a emoção do romance ficcional.

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  5. Gostei muito da tua critica que me levou ao livro que li há tantos anos. Acho que vou redescobri-lo. Obrigada Artur.

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  6. Li-o há décadas, só depois avancei para o memorável “A Insustentável Leveza do Ser”, muito bom, assim como as suas notas de leitura…

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