7 de setembro de 2015

Salman Rushdie, as maldições dos versículos satânicos

«“It was the Devil”, he says aloud to the empty air, making it true by giving it voice. “The last time, it was Shaitan.” This is what he has heard in his listening, that he has been tricked, that the Devil came to him in the guise of the archangel, so that the verses he memorized, the ones he recited in the poetry tent, were not the real thing but its diabolic opposite, not godly, but satanic.»
Salman Rushdie, The Satanic Verses (1988)
Quando já se esgotou o espaço visível nas estantes pessoais dum leitor compulsivo para alojar novas aquisições, a solução mais sensata é voltar a visitar os hóspedes que ali habitam há vários anos, mudos e quedos, como se tivessem deixado de existir. Sobretudo aqueles que por motivos vários não conseguiram despertar em nós um entusiasmo estético particular ao percorrê-los, a ponto de poderem ocupar a tal lista dos livros duma vida. Resgatei estas férias de verão alguns deles, entre os quais se conta a mais polémica criação de Salman Rushdie, Os versículos satânicos (1988). Na altura do primeiro encontro não entendi muito bem o porquê duma tal sanha persecutória contra uma obra de ficção, que então coloquei na categoria pouco abonatória das banalidades literárias sem futuro previsível à vista. 

Reencontrei três histórias nucleares entrelaçadas num romance de prodígios incontáveis. Tudo começa com a queda de dois indianos dum avião em chamas por ter sido atacado por um grupo de separatistas sikhs. Conseguem sobreviver ao embate nas águas inglesas do canal da Mancha. Um deles ganha as caraterísticas dum anjo e o outro a aparência dum diabo. Depois há o caso duma menina indiana, bela e pobre, que encabeça uma peregrinação de camponeses muçulmanos a Meca. São guiados por um bando de borboletas até ao mar da Arábia onde se afogam. As águas recusaram abrir-se à sua passagem, engolindo todos no seu interior. O remate chega-nos com um profeta fundador duma nova religião no deserto, em tudo idêntica a uma outra bem conhecida. Inclusive na tentativa demoníaca de contaminar os versículos celestiais da nova fé com outros oriundos das profundezas infernais. A polémica instala-se fora da ficção, no seio do fundamentalismo islâmico. O autor foi condenado à morte pelo aiatola Khomeini e a obra transformou-se num bestseller instantâneo no mundo livre. 

É frequente encontrar este relato associado ao realismo mágico latino-americano. Prefiro integrá-lo no universo genérico teorizado por Tzvetan Todorov*. A interpretação dos sucessivos casos de insólito obrigam-nos a saltitar sem descanso das categorias do estranho para as do maravilhoso. De permeio fica ainda a hesitação constante exigida pelo fantástico puro. Aquele que se encontra situado a meio caminho da explicação racional do natural e a aceitação tácita do sobrenatural. O incrível, o raro, o extraordinário, o chocante, o singular, o esquisito, o desusado e o invulgar de algumas das situações narradas tanto se podem enquadrar na gramática da literatura de horror, quiçá policial, como serem interpretadas ao abrigo da dicotomia real-imaginário atualizada pelo sonho, loucura ou droga. A referência às perturbações mentais dos protagonistas, ao caráter onírico de algumas sequências por si relatadas, aos projetos cinematográficos ou radiofónicos que os unem, ajudam a desenhar um cenário perfeitamente plausível à luz do bom senso exigido pela incredulidade dos nossos dias. Até nos esquecemos de todos aqueles episódios que só se podem explicar através da alotopia referida por Umberto Eco**. Admitir que a subjetividade que habita em nós possa ser muito diferente da objetividade que nos rodeia e abriga. Aceitar sem rebuços e duma vez por todas a máxima de que tudo o que o homem imagina é real. 

O romance maldito de Rushdie, esses versículos satânicos que tanta tinta têm feito correr ao longo dos anos, é tudo aquilo que nós quisermos que seja. Uma alegoria aos nossos tempos. Agora mais do que nunca. As notícias com que os mass media nos invadem o quotidiano são uma prova cabal disso. A intolerância anda no ar. Os fundamentalismos não descansam. O livre arbítrio humano é cerceado pela predestinação divina. Temos de ser aquilo que os mensageiros iluminados do além nos ordenam. Submissos. Eleger o bem e afastar o mal. Ignorar que o angélico e o diabólico são as duas faces duma mesma moeda. Coexistem desde sempre na natureza humana que nos define como seres viventes. Só assim se pode entender que onde não há crença não há blasfémia possível. A verdadeira esquizofrenia está em pensar precisamente o contrário. A releitura do relato que incendiou meio mundo terminou. O exemplar que me acompanhou na viagem já voltou à estante caseira de guardar livros. Um dia destes ainda volto a visitá-lo. A lição dos textos é insaciável nos seus ensinamentos. Aproveitemos o privilégio da sua companhia preciosa, da sua solidariedade absoluta, da sua sabedoria incondicional. 

NOTAS
(*) Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica. Lisboa: Moraes Editores, 1977.
(**) Umberto Eco, «Os mundos da ficção científica», IN Sobre os espelhos e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.

2 comentários:

  1. Magnífica recensão deste livro do fantástico e do incrível, que muito me enredou nas suas páginas. Todos os livros de Salman Rushdie conseguem envolver-me devido à sua versatilidade e poder de iludir entre o real e o fantástico (O chão que ela pisa; O último suspiro do mouro; Oriente, Ocidente; Grimus); pelo que muito agradeço mais esta sugestão de sacudir mais uma vez o pó dos livros nas estantes.

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  2. A curiosidade levou-me a adquiri-lo quando apareceu nas bancas. Confesso que o li com dificuldade. Agora, fiquei com vontade de o reler e, à luz dos acontecimentos últimos e os inúmeros relatos que nos chegam do Oriente talvez o compreenda melhor... A resenha no seu blog ajudou-me.

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