5 de janeiro de 2017

Mark Pryor, histórias secretas do livreiro parisiense de obras raras

«If peace had a smell, it would be the smell of a library full of old, leather-bound books.»
Mark Pryor, The Bookseller (2012)
A aquisição dum livro que nunca se viu, escrito por um autor de quem nunca se ouviu falar, pode resultar numa experiência de leitura dececionante e inibidora de outras futuras, por fugir a todas as expectativas até então acalentadas. Fui levado este verão ao engodo por uma palavra-chamariz muito especial. Aquela que estava registada em letras garrafais na respetiva capa, dava um sentido inequívoco ao título e sintetizaria o argumento da obra a que se reportava. Foi-me apresentado por um anúncio digital que me chamou a atenção numa navegação sem terra à vista na galáxia virtual da Internet. Há certas sonoridades verbais que funcionam como se de verdadeiros iscos se tratasse, ajustadas com mestria a ratoeiras de eficácia inegável. Foi o caso. Caiu-me na rifa o romance de Mark Pryor que dá pelo nome estimulante de O livreiro (2012), o primeiro tomo duma série policial, centrada no mundo do crime e na descoberta dos seus mistérios, pelo trabalho árduo de Hugo Marston, um decifrador amador de enigmas, e desenhado à maneira clássica dos relatos detetivescos. O sucesso do projeto parece estar assegurado, dado que a editora encarregada da sua publicação já deu à estampa seis volumes diferentes, devidamente publicitados nos locais habituais. Não me parece que me ponha desesperadamente à sua procura para fruição recreativa, por muito emocionantes que os enredos nos sejam prometidos. Um dia destes começam a ser adaptados ao pequeno ecrã por um qualquer canal televisivo anglo-saxónico especialista na matéria, sobretudo quando se trata dum cidadão inglês a residir nos EUA. O tempo de desvendar os tramas urdidos no bas-fond da marginalidade fora-da-lei não deve ultrapassar, a meu ver, a hora e meia que a linguagem das imagens em movimento lhe costuma dedicar.

A história está ancorada na decifração dos segredos guardados nas entranhas de um dos livros raros negociados numa banca parisiense instalada nas cercanias da Pont Neuf, por um velho bouquiniste, atividade inadvertidamente traduzida para bookseller e livreiro. O problema que nos vai acompanhando ao longo da investigação é a de saber qual deles nos conduzirá ao desenlace esperado da intriga. Se os dois que o inspetor de serviço lhe comprou ou se o que o vendedor tinha consigo quando foi raptado em plena luz do dia. As hipotéticas revelações oferecidas pelo Agatha Christie, na primeira edição de 1935 de Death in the Clouds, são rapidamente descartadas, o mesmo acontecendo com um pouco mais de esforço no Une saison en enfer, composto por Arthur Rimbaud em 1873, no exemplar assinado pelo autor e dedicado a Paul Verlaine. Falsas pistas gradualmente substituídas por uma outra tão verdadeira como as anteriores, posta a nu com a mensagem contida num microdot inserido no canto inferior direito da guarda do Vom Kriege, de Carl von Clausewitz, um tratado incompleto que fala das guerras napoleónicas, publicado post-mortem em 1832, a denunciar a atividade colaboracionista do membro da ancestral e prestigiada família gaulesa dos condes Roussillon d’Auvergne, durante a ocupação germânica imposta pelas guerras hitlerianas de conquista da Europa e do mundo. As causas da morte de Maximilian Ivan Koche, sobrevivente do Holocausto e caçador de nazis, bem como o de outros colegas seus bouquinistes, devera-se a uma rede internacional de tráfico de drogas interessada em estabelecer pontos de atuação junto às margens do Sena. Tessituras diegéticas penosas de tratar, cujas relações com o mundo livreiro se transforma num mero pretexto para dificultar a resolução final de todos os dados contidos numa equação a várias incógnitas que aqui não convém desvendar.

O universo dos livros foi-me sugerido pela leitura apressada duma obra onde os livros acabam por desempenhar um papel um tanto ou quanto subalterno no cômputo geral das situações possíveis da vida decalcadas pela ficção, mas que, mesmo assim, nos convidam a refletir sobre a realidade específica que os define. Descobrir, por exemplo, a razão lógica que faz com uma editio princeps seja mais importante do que as que se lhe seguiram, se o conteúdo que as une continua a ser o mesmo. Pessoalmente, prefiro mil vezes que o exemplar que tenho entre mãos cheire a tinta acabada de imprimir do que cheire a velho recoberto de bolor. Idiossincrasias de certo modo questionadas no próprio texto que agora me ocupa. O antigo agente do FBI e atual funcionário da embaixada americana na Cidade Luz não pensou duas vezes no conteúdo dos livros que tinha selecionado para impressionar a mulher a quem os queria oferecer. O mesmo se não passará com o autor que tão bem se aproveitou das personagens-tipo de Hercule Poirot e Sherlock Holmes, várias vezes citados e imitados ao longo do relato, ou mesmo de Miss Marple e outros heróis/heroínas mais ou menos conhecidos deste género narrativo que o terão ajudado a construir o seu modelo particular. Podia ter escolhido pior. Valha-nos isso. Que se mantenha nesta linha discursiva e consiga adaptar-se às exigências dos tempos de início de um novo século e milénio. Os amantes da literatura do estranho puro só terão de agradecer.

2 comentários:

  1. Um autor que não conheço, pelo que fui pesquisar sobre ele. Ao que parece, está lançado de vento em popa, com um livro por ano. Um título que me cativou logo, mas a tua crítica de peso avisa-me sobre a teia emaranhada do enredo

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  2. Voltei a comprar um livro pela sonoridade do título. Desta vez, todavia, tive o cuidado de me informar com antecedência das suas caraterísticas básicas. Trata-se dum romance datado e com um historial de sucessos a acompanhá-lo. Foi escrito pela vencedora do Booker Prize e o New York Times considera-o excecional, uma preciosidade. Estou a referir-me a Penelope Fitzgerald, «A livraria» (1978). A ver vamos o que me diz a visita que um dia destes lhe farei...

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