«… Uma referência especial à escritora e amiga Hélia Correia, que me cedeu a sua maravilhosa personagem Lillias Fraser para acompanhar a “minha” Leonor ao longo dos anos esta sua história…»
Encontro no Convento das Inglesinhas
Quando
volto a cabeça vejo-a:
nimbada
de luz a fitar-me imóvel à entrada da porta.
Vestido
de linho de um tom de pérola recolhido, descendo liso e solto ao longo do corpo
magro de ossos miúdos; saia cingindo a cintura estreita, mangas compridas que
mal deixam a descoberto os pulsos frágeis. Tem olhos amarelos acusando a
linhagem de bruxas e feiticeiras, a pele de uma palidez exaltada e os cabelos
do recôndito tom do mel acrisolado.
Olhamo-nos
devagarinho, como quem cuida do que vai encon-trar e, porque ela hesita, acabo
por ser eu a dar o primeiro passo. Aproveitando a distração das freiras que
trocam segredos de re-ceitas com a dama de companhia de minha Mãe, deslizo sem
ruído pelas lajes da entrada e na tijoleira da copa, perseguindo-a no seu
recuo, cada vez mais fora do meu alcance, a tentar apagar-se na sombra de pedra
do corredor sombrio. No entanto, a claridade loura que emana sublinha-lhe o
vulto esquivo e tímido, que agora se detém, parado e hirto, limitando-se a
ver-me aproximar com receio, até ao momento em que também se entrega e
corresponde, ambas de diferente altura, mãos a tatear o ar como se fôssemos
cegas, mas apenas encandeadas pela aura uma da outra; e quando os nossos dedos
se encontram o luzimento é tanto que nos obriga a franzir as pálpebras transparentes.
«Como
te chamas?», consigo perguntar-lhe, temendo vê-la desvanecer na própria
ausência. «Lillias Fraser» ‒ responde-me muito baixo, ‒ numa voz rouca e intumescida,
como se as palavras teimassem em não querer sair-lhe dos lábios descoloridos.
fe
Detive-me
encostada ao umbral da portada grande cozinha do convento, onde ia buscar o chá
de tília pedido por soror Theresa. Andar descuidado o meu, de quem não espera
encontrar surpresa em coisa alguma, esgueirando-me das adivinhações e das
alu-cinações por entre os interstícios do medo, tentando reparar naquilo em que
seria óbvio reparar. Mas, sem aviso, o improvável surgiu à minha frente na
figura de uma menina muito composta, capinha de fazenda cinzenta, mãos
escondidas num regalo de arminho, cabelos claros e ondeantes debaixo do chapéu
enfeitado com penas marfinadas de peito de pomba.
Estupefacta,
parei sem saber se ela seria real ou imaginária, de tal maneira me parecia
improvável estar ali à mistura com as irmãs cozinheiras, com as noviças
estouvadas, com as velhas enre-geladas agachadas ao pé do fogo. Fascinada vi-a
imóvel junto à mesa dos doces, olhar vidrado de gulodice, a língua rosada e
húmida a passear ao leve ao longo do indeciso contorno dos lábios, enquanto ia
tomando o gosto aos odores da encharcada, dos melindes, dos fios de ovos
soltos, cheiros que se evolavam, encorpados de açúcar em ponto, das taças de
vidro delicado, das tigelinhas de compota.
Senti-me
estremecer diante de tamanha volúpia incontida, de tanto vacilo à beira do
capricho que estranhei no desconhecimento do suspiro contido, da determinação
em aceitar o desejo, do êxtase da entrega; enquanto eu me distancio das
pessoas, temendo adi-vinhar-lhes a morte, a sombra, o seu descomposto interior,
a vida de que vejo os limites, o fundo o lodo, as rachas, na voraz roedura do
corpo. Dom maldito que arrasto em silêncio, conhecendo o peso da sua asfixia,
da sua secura obsessiva que me afasta dos outros, atardando-me na perda, na
falha; cheiro a ferrugem dos sangues ou a ferro agoirento: das espadas, das
armaduras, das viseiras, a recordarem a crueldade de um campo de batalha.
Anseio
pelo que é alvo e puro, sem nenhuma memória, condenada eu a adivinhar o
futuro. Naquele instante, no entanto, conseguindo iludir o conhecimento do
tempo que ainda há de vir, adiantado pelas alucinações que chegam de madrugada.
Mas quando ela me viu recuei, consciente expectante diante da imagem do meu
próprio avesso, entregue já à sua fraqueza dúctil e nela me reconhecendo: meu
outro mesmo lado, sol da minha sombra, lua do meu negrume, rosa-do-mato ou flor
de açucena. Criança delicada e suspeitosa com quem logo me senti irmanada sem
nunca nos termos chegado a tocar, apesar do encontro da ponta dos nossos dedos.
Sem
entender porquê retrocedi, cada passo para trás contado e medido sem pressa. Foi
então que ela andou até onde eu estava, mãos alongadas na direção das minhas,
estendidas em meu amparo, voz breve a perguntar-me: «Como te chamas?» E eu da
minha antiga mudez atirei fora o susto e respondi-lhe de rouquidão na fala
intumescida, a atropelar-se na garganta apertada: Lillias Fraser, e tu?» | Talvez
ela tenha hesitado uns segundos, demorando um tudo-nada a resposta: «Leonor de
Almeida.» E coisa alguma mais dissemos pois, sem outro motivo aparente que não
fosse o destino, nos completávamos.
Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor (Lx: 2011,
1057, 30-32)