30 de agosto de 2018

Who's who in the meme?

       Harry Bliss, Famous Artist's Modeling Agency       

Chi l’ha fatto? | Qui l'a fait ? Hvem gjorde det? | ¿Quién lo hizo? | Who did it?  

Parte das férias de verão que vivi com a infância das minhas filhas foi passado com passatempos descomprometidos que entretinham toda a família e amigos. Numa altura em que não havia telemóveis, Internet ou smartphones, qualquer brincadeira inofensiva servia para preencher um serão ou parte dele. Entre todos sobressaía um em forma de livro. Where's Wally? Depois a adolescência chegou a passos largos e novas distrações se perfilaram no horizonte.

Este ano entretive-me com uma pesquisa de descoberta das seis personagens representadas num meme que ciclicamente aparece nas redes sociais. Troquei o «onde?» pelo «quem?» interrogativos e pus-me à procura do Who's who?, replicado por Harry Bliss no Famous Artist's Modeling Agency. A descoberta do nome do cartunista americano já foi uma proeza. A sua omissão nas diversas publicações que pululam  no mundo virtual é sistemática.

As figuras pintadas por Modigliani, Léger, Munch, Picasso e Whistler são desenhadas pelo memista na sala de espera duma agência de modelos que lhes dá as boas-vindas. Destaca-se no meio das cele-bridades convocadas uma desconhecida, sentada junto ao office da direção. Presumo tratar-se duma criação do autor que assina a composição humorística, a provar, por a+b, que a arte é um jogo de cumplicidades onde todos têm o direito de viver e conviver.

MODELOS:
Amadeo Modigliani, Jeanne Hébuterne with Yellow Sweater (Le sweater jaune) | Fernand Léger, Femme assise  |  Edvard Munch - Skrik | Pablo Picasso, Le Rêve | [Harry Bliss, The model (?)] |  James McNeill Whistler, Whistler's Mother 

27 de agosto de 2018

Amin Maalouf: mitos, lendas, crónicas, ecos e histórias do rochedo de Tanios

« Dans le village où je suis né, les rochers ont un nom. Il y a le Vaisseau, la Tête de l’ours, l’Embuscade, le Mur et aussi les Jumeaux, encore dits les Seins de la goule. Il y a surtout la Pierre aux soldats ; c’est là qu’autrefois on faisait le guet lorsque la troupe pourchassait les insoumis ; aucun lieu n’est plus vénéré, plus chargé de légendes. Pourtant, lorsqu’il m’arrive de revoir en songe le paysage de mon enfance, c’est un autre rocher qui m’apparaît. L’aspect d’un siège majestueux, creusé et comme usé à l’emplacement des fesses, avec un dossier haut et droit s’abaissant de chaque côté en manière d’accoudoir – il est le seul, je crois, à porter un nom d’homme, le Rocher de Tanios. »
Amin Maalouf, Le Rocher de Tanios (1993)
Está fora dos meus hábitos ler um livro duas vezes. A menos que o prazer da primeira leitura me tenha despertado a vontade de o repetir uma e outra vez. Acontece. Alguns dos textos de Amin Maalouf estão neste número restrito de segundas e terceiras visitas. Recomecei há tempos uma nova ronda pelo seu universo romanesco, seguindo uma ordem mais ou menos cronológica de publicação. Depois de ter regressado aos relatos de figuras históricas com existência real, voltei-me para os percursos de vidas imaginadas como se fossem verdadeiras. A última etapa de redescoberta da obra do jornalista, ensaísta e ficcionista assentou arraiais na Montanha do Líbano, cenário privilegiado para ouvir o narrador-autor contar-nos em forma de escrita uma lenda do seu país natal. Desenvolveu-a como só ele o sabe fazer e deu-lhe o título sugestivo de O Rochedo de Tanios (1993). Nesse mesmo ano receberia o Prix Goncourt, o mais antigo e prestigioso prémio literário de expressão francesa.

O argumento é fácil de delinear. Encontra-se registado na contracapa do exemplar dos Livre de Poche da Grasset que tenho entre mãos e me serviram de passaporte para viajar para o interior da fábula. Trata-se de factos dados como ocorridos e atestados por todos aqueles que os presenciaram de perto. O destino de Tanios, versão local de Antoine-Antoun-Antonios-Mtanios-Tanous, está enquadrado por dois mistérios insondáveis que balizam o seu próprio nascimen-to-morte/desaparecimento, embrião dum mito local a caminho do global. O filho da bela Lamia sentir-se-á sempre inseguro sobre a identidade do seu verdadeiro pai, se o legítimo esposo ou o alegado amante da mãe. Por esclarecer fica também o seu paradeiro após ter desaparecido sem deixar rasto junto ao rochedo a que deu nome. Os pormenores de percurso, situados entre 1820 e 1840, deverão ser procurados no interior do romance. Para isso foi criado pela instância enunciadora e posto à disposição dos curiosos pelas entidades editoras.

O cronista, nativo da aldeia que serviu de palco principal ao drama, recorre a um velho tópico literário, o de convocar todas as fontes orais e escritas disponíveis para dar conta das ocorrências narradas. Tenta assim transmitir uma sensação de verosimilhança à relação em curso. Ouve as palavras proferidas por um primo ainda vivo do avô e confronta os testemunhos escritos sobreviventes à voragem do tempo. Ecos distantes dum passado recente. Destaca a Chronique montagnarde, deixada manuscrita pelo monge Elias de Kfaryabda, que recupera do esquecimento, devidamente recopiada, traduzida e pontuada. Esquadrinha ainda sistematicamente outros documentos autênticos imprescindíveis para a conclusão da tarefa encetada, inserindo alguns extratos mais significativos na abertura das nove passages (etapas) em que subdivide o texto. La sagesse du muletier Nader; a Lettre do reverendo Ishaac, diretor da Escola inglesa de Sahlaïn; e as Éphémérides do pastor anglicano Jeremy Stolton. O efeito de veracidade desejado estava obtido.

Tudo ficaria no domínio do factual se a ficção não surgisse logo de seguida. Acontece quando, adverte o leitor, em Nota final, que a conceção do livro se inspirara livremente numa história verdadeira, o assassínio dum patriarca, cometido no século XIX por um certo Abou-kichk Maalouf, refugiado no Chipre com o filho, traído por um agente do emir e executado como assassino. A fronteira do real e do imaginário até poderá situar-se nos apelidos do condenado à forca e do obreiro da lenda novecentista, sediada no Império Otomano, então disputado pelas forças hegemónicas do Egito e da Inglaterra. Coincidência onomástica pura ou talvez não. Pouco conta para o caso. O que há, de certeza, é uma tentativa do criador libanês de expressão francesa de estabelecer pontes de entendimento entre o Oriente e o Ocidente, entre religiões, culturas e civilizações, presente em toda a sua produção literária e historiográfica. Empre-endimento iniciado há três décadas e meio  com a publicação d'As Cruzadas vistas pelos Árabes (1983) e continuada com muitos romances e ensaios de permeio, até chegar a Un fauteuil sur la Seine. Quatre siècles d’histoire de France (2016), ainda à espera duma tradução portuguesa condigna que provavelmente nunca acontecerá. Um longo percurso pela república das letras que, para proveito e deleite de todos nós, desejamos se prolongue num porvir distante até onde a vista possa alcançar e abraçar, lá nessa linha aparente do horizonte onde o autêntico e a fantasia se cruzam, onde o engenho age e a arte nascem.

20 de agosto de 2018

Dom Robertos de praia

        Raquel Roque Gameiro Ottolini        

TEATRO PRAIA TÍTERES

O meu primeiro dente de leite rompeu-me as gengivas aos três meses. Deve ter sido ajudado pelo ar do mar. Ocorreu numa manhã de julho num ambiente de praia. Nas décadas de 50/60, a época balnear começava com o solstício de verão e só findava com o equinócio de outono. Depois de iniciada a idade escolar, as férias grandes encurtaram um pouco e limitaram-se às quatro semanas e meia de agosto e umas pitadas de setembro. 

As manhãs da minha infância na Areia Branca decorreram sempre com grande animação. Jardins de algas, castelos de areia molhada, banhos de mar e sol. Merendas de pão fateado e fruta fresca a meio da jornada. Um gelado de vez em vez ou uma bolacha americana. A partir de determinada altura, começámos a querer imitar os piqueniques d'Os Cinco. A Enid Blyton estava então na moda e fazia parte dos nossos hábitos de leitura.

De quando em quando uma trupe de Dom Robertos descia à aldeia de barracas de madeira e de pano às riscas. O teatro de fantoches de chita vestido assentava arraial junto aos baloiços, para alegria de miúdos e graúdos. As vozes de cana rachada e as cacetadas nas cabeças de pau contavam histórias de títeres belicosos com enredos de faca e alguidar há muito esquecidos. Memórias antigas avivadas com muito sol, muito mar e muito verão.

17 de agosto de 2018

As luzes da marquesa


Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre 

Condessa de Oeynhausen e Marquesa de Alorna
MEMÓRIA
Dessa época guardei a forte determinação que só agora, depois de velha e julgando-me acabada, há quem pareça apreciar enquanto traço do meu caráter e personalidade; sem se aperceber como o fogo se mantém aceso no meu peito, nem como continuo sufocando diante da mediocridade, negando-me a permanecer desmerecida num terreno devastado, onde nenhuma planta vinga, por entre cardos e espinhos. «Não acende um só suspiro. Chama que devo apagar: Siga-se à dor o silêncio. Vencer é saber calar.» 
Maria Teresa Horta, As luzes de Leonor (2011, 21-22)
Viajei com a sedutora de anjos, poetas e heróis na bagagem de férias. Trouxe-a para a praia, para reviver à beira-mar outras jornadas de exercício académico que trilhámos em conjunto. Escritos pequenos e longos, parcelares e de circunstância. Trago-a a banhos pela segunda vez e boa companhia nos fizemos então e agora. Liberta das apresentações formais em ambientes de erudição oficial. A marquesa voltou a partilhar as suas cartas, monólogos e poemas, a abrir os seus cadernos e a desfiar as suas memórias de mulher das luzes e talento poético. Confidências criadas-recriadas à distância de dois séculos pela fantasia alada da sua descendente em quinta geração. Fragmentos de vida vivida-revivida quando a mão invisível e sem peso de Leonor de Almeida Portugal aflorava uma e outra vez o cimo do ombro de Maria Teresa Horta. E quando uma se debruçava sobra a escrivaninha da outra, lhe roçava ao de leve o pulso e lhe submetia o perfume almiscarado da pele macia, o retrato idealizado da protagonista dum romance caleidoscópico foi paulatinamente surgindo, inventado do grão de luz ao bago da romã.

Viajei com a reconstituição-reconstrução biográfica da condessa de Oeynhausen e marquesa de Alorna, conhecida na intimidade conjugal por Nelly e nos círculos poéticos dos outeiros, academias e salões literários por Lídia, Lília, Lize, Laura ou Alcipe, um separar de águas convencional entre as práticas familiares do dia-a-dia e as ditadas pelas correntes pós-barrocas iluministas e pré-românticas liberais. Poemas declamados em serenins, serenatas e saraus. Aplaudidos nos palácios imperiais e reais das casas de Áustria, Bourbon e Bragança. Tão visionários para a sua época, tão exóticos para a nossa. Arte maior de poesia integral integrada num relato labiríntico de prosa poética. Lidas e relidas as histórias com história dentro, perdida a idealização que habita no imaginário literário, afastados os fantasmas do passado a assombrarem os devaneios do presente, fica-nos a verdadeira vida da retratada por pintar. Exercício puro por traçar da herdeira de Távoras, Alornas e Fronteiras. Jogos de poder, jogos de enganos, jogos de sedução em aberto. Nada que o engenho e arte não possa exercitar e executar.

13 de agosto de 2018

A visita anual das Perseidas

  STAR GATES : The Book of Miracles -  The Augsburg Wunderzeichenbuch (1533)  

ESTRELAS-CADENTES

Em noite de chuva de estrelas-cadentes, deitei-me ao comprido na espreguiçadeira do quintal da casa de férias e esperei que o fenómeno anual anunciado nos mass media se repetisse mais uma vez. De barriga para cima e olhar atento, perscrutei as estrelas-fixas da esfera celeste que as luzes esmaecidas duma aldeia sossegada da beira-mar deixam vislumbrar.

Detetei a Ursa Maior que me apontou sem rebuço para a estrela polar alojada na Ursa Menor. Observei pontos de brilho variado na mancha leitosa da Estrada de Santiago. Até consegui lobrigar um ou outro planeta mais afoito de se deixar ver sem me ter atrevido a dar-lhe um nome preciso. Seria Vénus ou Marte, seria Júpiter ou Saturno, a rondar o astro-rei invisível.

Procurei bem longe no horizonte onde o olhar se perde e a vista alcança e fui incapaz de encontrar a constelação de Perseu, onde as estrelas-cadentes se manifestam. Vi duas. Nem mais nem menos. A chuva prometida nem a aguaceiro chegou. Para o ano, vou deitar-me no areal da praia. Talvez assim a chuvada de meteoritos mostre um ar da sua graça.

6 de agosto de 2018

Leonor de Almeida & Lillias Fraser

«… Uma referência especial à escritora e amiga Hélia Correia, que me cedeu a sua maravilhosa personagem Lillias Fraser para acompanhar a “minha” Leonor ao longo dos anos esta sua história…»

Encontro no Convento das Inglesinhas 

Quando volto a cabeça vejo-a:
nimbada de luz a fitar-me imóvel à entrada da porta.
Vestido de linho de um tom de pérola recolhido, descendo liso e solto ao longo do corpo magro de ossos miúdos; saia cingindo a cintura estreita, mangas compridas que mal deixam a descoberto os pulsos frágeis. Tem olhos amarelos acusando a linhagem de bruxas e feiticeiras, a pele de uma palidez exaltada e os cabelos do recôndito tom do mel acrisolado.
Olhamo-nos devagarinho, como quem cuida do que vai encon-trar e, porque ela hesita, acabo por ser eu a dar o primeiro passo. Aproveitando a distração das freiras que trocam segredos de re-ceitas com a dama de companhia de minha Mãe, deslizo sem ruído pelas lajes da entrada e na tijoleira da copa, perseguindo-a no seu recuo, cada vez mais fora do meu alcance, a tentar apagar-se na sombra de pedra do corredor sombrio. No entanto, a claridade loura que emana sublinha-lhe o vulto esquivo e tímido, que agora se detém, parado e hirto, limitando-se a ver-me aproximar com receio, até ao momento em que também se entrega e corresponde, ambas de diferente altura, mãos a tatear o ar como se fôssemos cegas, mas apenas encandeadas pela aura uma da outra; e quando os nossos dedos se encontram o luzimento é tanto que nos obriga a franzir as pálpebras transparentes.

«Como te chamas?», consigo perguntar-lhe, temendo vê-la desvanecer na própria ausência. «Lillias Fraser» ‒ responde-me muito baixo, ‒ numa voz rouca e intumescida, como se as palavras teimassem em não querer sair-lhe dos lábios descoloridos.
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Detive-me encostada ao umbral da portada grande cozinha do convento, onde ia buscar o chá de tília pedido por soror Theresa. Andar descuidado o meu, de quem não espera encontrar surpresa em coisa alguma, esgueirando-me das adivinhações e das alu-cinações por entre os interstícios do medo, tentando reparar naquilo em que seria óbvio reparar. Mas, sem aviso, o improvável surgiu à minha frente na figura de uma menina muito composta, capinha de fazenda cinzenta, mãos escondidas num regalo de arminho, cabelos claros e ondeantes debaixo do chapéu enfeitado com penas marfinadas de peito de pomba.
Estupefacta, parei sem saber se ela seria real ou imaginária, de tal maneira me parecia improvável estar ali à mistura com as irmãs cozinheiras, com as noviças estouvadas, com as velhas enre-geladas agachadas ao pé do fogo. Fascinada vi-a imóvel junto à mesa dos doces, olhar vidrado de gulodice, a língua rosada e húmida a passear ao leve ao longo do indeciso contorno dos lábios, enquanto ia tomando o gosto aos odores da encharcada, dos melindes, dos fios de ovos soltos, cheiros que se evolavam, encorpados de açúcar em ponto, das taças de vidro delicado, das tigelinhas de compota.
Senti-me estremecer diante de tamanha volúpia incontida, de tanto vacilo à beira do capricho que estranhei no desconhecimento do suspiro contido, da determinação em aceitar o desejo, do êxtase da entrega; enquanto eu me distancio das pessoas, temendo adi-vinhar-lhes a morte, a sombra, o seu descomposto interior, a vida de que vejo os limites, o fundo o lodo, as rachas, na voraz roedura do corpo. Dom maldito que arrasto em silêncio, conhecendo o peso da sua asfixia, da sua secura obsessiva que me afasta dos outros, atardando-me na perda, na falha; cheiro a ferrugem dos sangues ou a ferro agoirento: das espadas, das armaduras, das viseiras, a recordarem a crueldade de um campo de batalha.
Anseio pelo que é alvo e puro, sem nenhuma memória, condenada eu a adivinhar o futuro. Naquele instante, no entanto, conseguindo iludir o conhecimento do tempo que ainda há de vir, adiantado pelas alucinações que chegam de madrugada. Mas quando ela me viu recuei, consciente expectante diante da imagem do meu próprio avesso, entregue já à sua fraqueza dúctil e nela me reconhecendo: meu outro mesmo lado, sol da minha sombra, lua do meu negrume, rosa-do-mato ou flor de açucena. Criança delicada e suspeitosa com quem logo me senti irmanada sem nunca nos termos chegado a tocar, apesar do encontro da ponta dos nossos dedos.

Sem entender porquê retrocedi, cada passo para trás contado e medido sem pressa. Foi então que ela andou até onde eu estava, mãos alongadas na direção das minhas, estendidas em meu amparo, voz breve a perguntar-me: «Como te chamas?» E eu da minha antiga mudez atirei fora o susto e respondi-lhe de rouquidão na fala intumescida, a atropelar-se na garganta apertada: Lillias Fraser, e tu?» | Talvez ela tenha hesitado uns segundos, demorando um tudo-nada a resposta: «Leonor de Almeida.» E coisa alguma mais dissemos pois, sem outro motivo aparente que não fosse o destino, nos completávamos.

Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor (Lx: 2011, 1057, 30-32)