6 de agosto de 2018

Leonor de Almeida & Lillias Fraser

«… Uma referência especial à escritora e amiga Hélia Correia, que me cedeu a sua maravilhosa personagem Lillias Fraser para acompanhar a “minha” Leonor ao longo dos anos esta sua história…»

Encontro no Convento das Inglesinhas 

Quando volto a cabeça vejo-a:
nimbada de luz a fitar-me imóvel à entrada da porta.
Vestido de linho de um tom de pérola recolhido, descendo liso e solto ao longo do corpo magro de ossos miúdos; saia cingindo a cintura estreita, mangas compridas que mal deixam a descoberto os pulsos frágeis. Tem olhos amarelos acusando a linhagem de bruxas e feiticeiras, a pele de uma palidez exaltada e os cabelos do recôndito tom do mel acrisolado.
Olhamo-nos devagarinho, como quem cuida do que vai encon-trar e, porque ela hesita, acabo por ser eu a dar o primeiro passo. Aproveitando a distração das freiras que trocam segredos de re-ceitas com a dama de companhia de minha Mãe, deslizo sem ruído pelas lajes da entrada e na tijoleira da copa, perseguindo-a no seu recuo, cada vez mais fora do meu alcance, a tentar apagar-se na sombra de pedra do corredor sombrio. No entanto, a claridade loura que emana sublinha-lhe o vulto esquivo e tímido, que agora se detém, parado e hirto, limitando-se a ver-me aproximar com receio, até ao momento em que também se entrega e corresponde, ambas de diferente altura, mãos a tatear o ar como se fôssemos cegas, mas apenas encandeadas pela aura uma da outra; e quando os nossos dedos se encontram o luzimento é tanto que nos obriga a franzir as pálpebras transparentes.

«Como te chamas?», consigo perguntar-lhe, temendo vê-la desvanecer na própria ausência. «Lillias Fraser» ‒ responde-me muito baixo, ‒ numa voz rouca e intumescida, como se as palavras teimassem em não querer sair-lhe dos lábios descoloridos.
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Detive-me encostada ao umbral da portada grande cozinha do convento, onde ia buscar o chá de tília pedido por soror Theresa. Andar descuidado o meu, de quem não espera encontrar surpresa em coisa alguma, esgueirando-me das adivinhações e das alu-cinações por entre os interstícios do medo, tentando reparar naquilo em que seria óbvio reparar. Mas, sem aviso, o improvável surgiu à minha frente na figura de uma menina muito composta, capinha de fazenda cinzenta, mãos escondidas num regalo de arminho, cabelos claros e ondeantes debaixo do chapéu enfeitado com penas marfinadas de peito de pomba.
Estupefacta, parei sem saber se ela seria real ou imaginária, de tal maneira me parecia improvável estar ali à mistura com as irmãs cozinheiras, com as noviças estouvadas, com as velhas enre-geladas agachadas ao pé do fogo. Fascinada vi-a imóvel junto à mesa dos doces, olhar vidrado de gulodice, a língua rosada e húmida a passear ao leve ao longo do indeciso contorno dos lábios, enquanto ia tomando o gosto aos odores da encharcada, dos melindes, dos fios de ovos soltos, cheiros que se evolavam, encorpados de açúcar em ponto, das taças de vidro delicado, das tigelinhas de compota.
Senti-me estremecer diante de tamanha volúpia incontida, de tanto vacilo à beira do capricho que estranhei no desconhecimento do suspiro contido, da determinação em aceitar o desejo, do êxtase da entrega; enquanto eu me distancio das pessoas, temendo adi-vinhar-lhes a morte, a sombra, o seu descomposto interior, a vida de que vejo os limites, o fundo o lodo, as rachas, na voraz roedura do corpo. Dom maldito que arrasto em silêncio, conhecendo o peso da sua asfixia, da sua secura obsessiva que me afasta dos outros, atardando-me na perda, na falha; cheiro a ferrugem dos sangues ou a ferro agoirento: das espadas, das armaduras, das viseiras, a recordarem a crueldade de um campo de batalha.
Anseio pelo que é alvo e puro, sem nenhuma memória, condenada eu a adivinhar o futuro. Naquele instante, no entanto, conseguindo iludir o conhecimento do tempo que ainda há de vir, adiantado pelas alucinações que chegam de madrugada. Mas quando ela me viu recuei, consciente expectante diante da imagem do meu próprio avesso, entregue já à sua fraqueza dúctil e nela me reconhecendo: meu outro mesmo lado, sol da minha sombra, lua do meu negrume, rosa-do-mato ou flor de açucena. Criança delicada e suspeitosa com quem logo me senti irmanada sem nunca nos termos chegado a tocar, apesar do encontro da ponta dos nossos dedos.

Sem entender porquê retrocedi, cada passo para trás contado e medido sem pressa. Foi então que ela andou até onde eu estava, mãos alongadas na direção das minhas, estendidas em meu amparo, voz breve a perguntar-me: «Como te chamas?» E eu da minha antiga mudez atirei fora o susto e respondi-lhe de rouquidão na fala intumescida, a atropelar-se na garganta apertada: Lillias Fraser, e tu?» | Talvez ela tenha hesitado uns segundos, demorando um tudo-nada a resposta: «Leonor de Almeida.» E coisa alguma mais dissemos pois, sem outro motivo aparente que não fosse o destino, nos completávamos.

Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor (Lx: 2011, 1057, 30-32)

3 comentários:

  1. Li e amei ambos os títulos. Confidencio que foi Maria Teresa quem me apresentou Hélia Correia e me falou da urgência em ler Lilias Fraser. Ela tinha razão. Leonor das Luzes entrou para o meu cânone pessoal, Lilias Frazer segui-lhe o caminho.

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  2. Caminhos idênticos os nossos. Esse foi também o meu percurso. Através da sedutora de anjos, poetas e heróis cheguei à vizinhança da «Lillias Fraser» do convento das Inglesinhas e doutras paragens d'«As luzes de Leonor». Como diriam os franceses, «Les beaux esprits se rencontrent». Trouxe os livros da Maria Teresa Horta e a Hélia Correia de férias comigo e estamos a dar-nos muito bem...

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  3. Dois livros que ainda não li mas que soam bem aliciantes!

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