« Dans le village où je suis né, les rochers ont un nom. Il y a le Vaisseau, la Tête de l’ours, l’Embuscade, le Mur et aussi les Jumeaux, encore dits les Seins de la goule. Il y a surtout la Pierre aux soldats ; c’est là qu’autrefois on faisait le guet lorsque la troupe pourchassait les insoumis ; aucun lieu n’est plus vénéré, plus chargé de légendes. Pourtant, lorsqu’il m’arrive de revoir en songe le paysage de mon enfance, c’est un autre rocher qui m’apparaît. L’aspect d’un siège majestueux, creusé et comme usé à l’emplacement des fesses, avec un dossier haut et droit s’abaissant de chaque côté en manière d’accoudoir – il est le seul, je crois, à porter un nom d’homme, le Rocher de Tanios. »
Amin Maalouf, Le Rocher de Tanios (1993)
Está fora dos meus hábitos ler um livro duas vezes. A menos que o prazer da primeira leitura me tenha despertado a vontade de o repetir uma e outra vez. Acontece. Alguns dos textos de Amin Maalouf estão neste número restrito de segundas e terceiras visitas. Recomecei há tempos uma nova ronda pelo seu universo romanesco, seguindo uma ordem mais ou menos cronológica de publicação. Depois de ter regressado aos relatos de figuras históricas com existência real, voltei-me para os percursos de vidas imaginadas como se fossem verdadeiras. A última etapa de redescoberta da obra do jornalista, ensaísta e ficcionista assentou arraiais na Montanha do Líbano, cenário privilegiado para ouvir o narrador-autor contar-nos em forma de escrita uma lenda do seu país natal. Desenvolveu-a como só ele o sabe fazer e deu-lhe o título sugestivo de O Rochedo de Tanios (1993). Nesse mesmo ano receberia o Prix Goncourt, o mais antigo e prestigioso prémio literário de expressão francesa.
O argumento é fácil de delinear. Encontra-se registado na contracapa do exemplar dos Livre de Poche da Grasset que tenho entre mãos e me serviram de passaporte para viajar para o interior da fábula. Trata-se de factos dados como ocorridos e atestados por todos aqueles que os presenciaram de perto. O destino de Tanios, versão local de Antoine-Antoun-Antonios-Mtanios-Tanous, está enquadrado por dois mistérios insondáveis que balizam o seu próprio nascimen-to-morte/desaparecimento, embrião dum mito local a caminho do global. O filho da bela Lamia sentir-se-á sempre inseguro sobre a identidade do seu verdadeiro pai, se o legítimo esposo ou o alegado amante da mãe. Por esclarecer fica também o seu paradeiro após ter desaparecido sem deixar rasto junto ao rochedo a que deu nome. Os pormenores de percurso, situados entre 1820 e 1840, deverão ser procurados no interior do romance. Para isso foi criado pela instância enunciadora e posto à disposição dos curiosos pelas entidades editoras.
O cronista, nativo da aldeia que serviu de palco principal ao drama, recorre a um velho tópico literário, o de convocar todas as fontes orais e escritas disponíveis para dar conta das ocorrências narradas. Tenta assim transmitir uma sensação de verosimilhança à relação em curso. Ouve as palavras proferidas por um primo ainda vivo do avô e confronta os testemunhos escritos sobreviventes à voragem do tempo. Ecos distantes dum passado recente. Destaca a Chronique montagnarde, deixada manuscrita pelo monge Elias de Kfaryabda, que recupera do esquecimento, devidamente recopiada, traduzida e pontuada. Esquadrinha ainda sistematicamente outros documentos autênticos imprescindíveis para a conclusão da tarefa encetada, inserindo alguns extratos mais significativos na abertura das nove passages (etapas) em que subdivide o texto. La sagesse du muletier Nader; a Lettre do reverendo Ishaac, diretor da Escola inglesa de Sahlaïn; e as Éphémérides do pastor anglicano Jeremy Stolton. O efeito de veracidade desejado estava obtido.
Tudo ficaria no domínio do factual se a ficção não surgisse logo de seguida. Acontece quando, adverte o leitor, em Nota final, que a conceção do livro se inspirara livremente numa história verdadeira, o assassínio dum patriarca, cometido no século XIX por um certo Abou-kichk Maalouf, refugiado no Chipre com o filho, traído por um agente do emir e executado como assassino. A fronteira do real e do imaginário até poderá situar-se nos apelidos do condenado à forca e do obreiro da lenda novecentista, sediada no Império Otomano, então disputado pelas forças hegemónicas do Egito e da Inglaterra. Coincidência onomástica pura ou talvez não. Pouco conta para o caso. O que há, de certeza, é uma tentativa do criador libanês de expressão francesa de estabelecer pontes de entendimento entre o Oriente e o Ocidente, entre religiões, culturas e civilizações, presente em toda a sua produção literária e historiográfica. Empre-endimento iniciado há três décadas e meio com a publicação d'As Cruzadas vistas pelos Árabes (1983) e continuada com muitos romances e ensaios de permeio, até chegar a Un fauteuil sur la Seine. Quatre siècles d’histoire de France (2016), ainda à espera duma tradução portuguesa condigna que provavelmente nunca acontecerá. Um longo percurso pela república das letras que, para proveito e deleite de todos nós, desejamos se prolongue num porvir distante até onde a vista possa alcançar e abraçar, lá nessa linha aparente do horizonte onde o autêntico e a fantasia se cruzam, onde o engenho age e a arte nascem.
Se desejasse aventurar-me no universo de A. Maalouf, que título me sugeria, Artur? Que porta devo escolher?
ResponderEliminarTexto inspirador e muito sugestivo.
Pela parte que ao romance toca, começaria pelo «Leão, o Africano» (1986). Depois, se quisesse também aventurar-me no ensaio, atirar-me-ia sem hesitações a «As Cruzadas vistas pelos Árabes» (1983). Numa fase seguinte, estou certo que procuraria de imediato os restantes. Maalouf é irresistível para quem gosta de histórias bem contadas, as verdadeiras e as imaginadas.
ResponderEliminarUm magnífico enredo, que o texto torna ainda mais apetecível, sabendo que Amin Maalouf é um escritor que me tem trazido um enorme prazer na sua leitura. Obrigada por mais este registo, Prf.!
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