15 de outubro de 2018

Italo Calvino: se numa noite de inverno um viajante iniciasse uma história sem fim à vista…

«Se una notte d’inverno un viaggiatore, fuori dell’abitato di Malbork, Sporgendosi dalla costa scoscesa, senza temere il vento e la vertigine, guarda in basso dove l’ombra s’addensa, in una rete di linee che s’allacciano, in una rete di linee che s’intersecano, sul tappeto di foglie illuminato dalla luna, intorno a una fossa vuota – Quale storia attende laggiù la fine?»
Italo Calvino, Se una notte d’inverno un viaggiatore (1979)
Todo aquele que se interessar pelos universos da escrita e da ideali-zação de histórias fingidas deve procurar na sua livraria habitual, na biblioteca mais próxima ou no recanto esquecido duma estante de arrumar palavras escritas em livros o contributo valioso de Italo Calvino, Se numa noite de inverno um viajante (1979), publicado algumas décadas atrás, mas sempre atual nas reflexões nele contidas. Trata-se dum relato que nos exibe o incipit de dez outros relatos com muitas intrigas para contar. Todos têm um início registado nas páginas do volume a que o leitor tem acesso, mas nenhum deles lhe oferece um final tranquilizador das tramoias anunciadas. Exercício fascinante para quem entende a literatura como um desafio constante da imaginação para dar sentido aos labirintos da vida e às lacunas do dia-a-dia. 

O romance que alberga a promessa gorada duma mão cheia doutros mais no seu seio provocou, de imediato, uma acalorada discussão polémica na república global das letras, cujos ecos ainda se deixam ouvir com alguma nitidez nos nossos dias, a três décadas e meia de distância da editio princeps. A recensão crítica publicada na altura por Angelo Guglielmi numa revista da especialidade levou o criador italiano a ripostar com uma longa reflexão explicativa das questões arroladas, transcrita como apresentação da obra na reedição que segui. A réplica faz-se acompanhar duma chave de leitura pessoal do autor, esquissada em termos esquemáticos e facilitadores da tarefa decifradora encetada por um leitor menos prevenido. Trata-se duma iniciativa interessante em termos editoriais, mas limitadora da autonomia dos viajantes reais em interpretarem os viajantes virtuais equacionados pela ficção de ficções. 

Enquanto projeto diegético de definição e descrição autoral dum livro com livros dentro, a aproximação mimética aos palcos que pisamos e cenários que preenchemos, feita de dramas que começam e não acabam, remete-nos para um vasto políptico verbal de mexericos tecidos em dez painéis. Romances da névoa, da experiência corporal, do simbólico-interpretativo, do político-existencial, do cínico-brutal, da angústia, do lógico-geométrico, da perversão, do telúrico-primordial, do apocalíptico. Percurso guiado pelas rotas poéticas da invenção relatada, a que um mero caminheiro amante dos trilhos ignotos dará pouca ou nenhuma importância. A busca da plenitude sentida pelo fabulador, através dos olhares que perscrutam o absurdo, a transparência ou as origens do cosmos, não se compagina num esquema académico previamente traçado. É peculiar, única, singular. Tal como a criação artística, afinal de contas. 

Teorias à parte, a personagem Eu sai do interior da ficção que protagoniza e dirige-se ao leitor que a tem entre mãos nas páginas dum livro. Convida-o a entrar na trama. Fala-lhe do enredo e comenta as opções tomadas pelo autor que lhe deu vida. A passagem dumas histórias-encaixadas para outras processa-se por meio dum entre-cruzar de vozes, que têm na história-moldura uma porta de acesso privilegiada ao universo virtual do faz-de-conta que é assim. A transição de fragmentos recorre a uma bem-urdida teia de percalços editoriais e de atribuições apócrifas, superando com sucesso os perigos das mudanças constantes de argumentos lacunares ou de folhetins de cordel desirmanados, entregues periodicamente de porta em porta. Dédalo discursivo esboçado à maneira dum Jorge Luis Borges ou dum Edgar Alain Poe, arquitetos da palavra referidos por Italo Calvino no pré-texto que antecede a fábula propriamente dita, a que se pode agregar uma alusão implícita ao Ulisses de James Joyce, a tal epopeia em prosa distribuída por dezoito capítulos de diferente delineamento estilístico. 

É verdade que a história nuclear que une a totalidade das laterais até acaba em casamento. Um coup de foudre muito oportuno para selar o happy end ofertado aos dois leitores compulsivos de romances. Prémio de consolação pouco sedutor para quem gosta de imitações de vida com princípio, meio e fim. Por esta ordem ou por outra. Desconfio que o próximo livro que ler terá de obedecer a este triângulo operativo. É clássico e tem funcionado à perfeição nos dois últimos milénios de devir poético do género. Porque a missão de ser leitor dispensa lindamente a missão de ser escritor. Num mundo tão complexo como aquele em que os heróis da ficção nos tentam copiar a todo o custo, a vitória do ócio sobre o negócio é uma hipótese que não se deve descartar do nosso horizonte de expectativas.

NOTA
No dia do 95.º aniversário natalício do hiperficcionista, trago para este espaço a leitura da hiperficção que em tempos deixei registada no Pátio de Letras e dou-lhe os parabéns pela arte singular com que continua a dar vida aos labirintos discursivos dum hipertexto.

2 comentários:

  1. Prof., é sempre um prazer reler as tuas recensões! Ainda mais quando vêm acompanhadas das tuas achegas adicionais, que são outras lições pedagógicas sobre os simples comentários que leigos na matéria como eu deixam no teu blogue! Obrigada pela partilha!

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