24 de outubro de 2018

Três obras à procura dum autor credível e dum género à medida, ou talvez não...

DEDICATÓRIA, PRÓLOGO & INTRODUÇÃO: AUTORES ANÓNIMOS
«Naõ ensina ladroens o meu discurso, ainda que se intitula Arte de Furtar; ensina só a conhecellos, para os evitar... »
Arte de Furtar (c. 1652). Lisboa: INCM, 1991,  51
«Leytor curiozo, nestas fabulosas Obras do Fradinho da Mão Furada te offereço dezenganos de suas tentacoens e experiências de suas pe-nas, para fugirem a hũas e temeres as outras...»
Obras do Fradinho da Mão Furada  (>1744).  Lisboa: FCG-JNICT, 1991, 83
«Esta obra foi achada numa terra que ainda se não descobriu, mas que brevemente se espera esteja descoberta...»
O Piolho Viajante (1802). Lisboa: Estúdios Cor, 1973, 27
PRIMEIRA OBRA: ARTIFICIOSA
O tratadista da arte de furtar elenca um rol imenso de unhas treinadas no roubo dos bens alheios. Propõe-na ao rei Dom João Quarto para que a emende e dedica-a ao príncipe Dom Teodósio como aviso. Oferece-a a quem a quiser ler como espelho de enganos, teatro de verdades, mostrador de horas minguadas e gazua geral dos Reinos de Portugal. Conclui com a apresentação das tesouras corta-unhas da vigia, milícia e degredo, remate indicado para enfrentar todos os desenganos apontados nos setenta capítulos do tratado.  

SEGUNDA OBRA: DIABÓLICA
O soldado André Peralta regressa a casa depois de ter feito a Guerra da Flandres no tempo de Filipe Segundo de Castela. Afligido e maltra-tado, desgraçado e pobre, entra no Reino de Portugal e dirige-se a Lisboa, pátria de estrangeiro, madrasta dos naturais e protetora de venturosos. Em Évora, cruza-se com um espírito transmigrado da vida, a quem chamam Diabinho ou Fradinho da Mão Furada, por ter as mãos rotas de liberdades. As aventuras peregrinas dos dois têm início nesse altura e ocuparão os cinco fôlegos do relato.

TERCEIRA OBRA: PIOLHENTA
O Piolho Viajante, nascido na Ásia, fruto do ajuntamento duma Piolha e dum Elefante ou duma Tarântula macha, vê-se muito cedo obrigado a andar de cabeça em cabeça, na demanda inglória dum hospedeiro ideal, que o alimente dia a dia e não lhe cause incómodos de maior. Nas memórias que legou aos vindouros, descreve a sua passagem meteórica por setenta e duas carapuças, número bastante abaixo das mil e uma projetadas. Propósito louvável que um qualquer contra-tempo ou infeliz extravio de manuscritos terá provocado.
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AUTORES & GÉNEROS
Estas três obras costumam ser integradas na esfera da picaresca. Fi-liação falaciosa para um tratado precetista, uma palestra moral e uma fábula satírica, que primam ou pela falta de ação novelesca ou de ca-riz realista. Apicaradas, quiçá, ou de escárnio e maldizer bem ao jeito português das trovas medievais e dos autos vicentinos. As censuras então vigentes explicam o terem sido dadas a público sem nome de autor. Deixemo-las assim, que atribuições falsas, duvidosas e incer-tas em nada as fazem melhores ou piores do que são.

2 comentários:

  1. Anónimos nascemos | Anónimos sobrevivemos | Anónimos brilhamos...

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  2. Sem autor mas com a lição bem dada, em forma de metáfora, com a possibilidade de poder colher frutos...

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