«Venho para te cortar os dedos em moedas pequenas e com elas pagar ao coração o mal que me fizeste. O pior amor é este, o que já é feito de ódio também…»Valter Hugo Mãe, A desumanização (2013)
É assombroso o número de autores e obras que ouvimos referir todos os dias, com os melhores elogios que a língua falada permite tecer, sem termos passado os olhos por nenhuma linha de palavras por si desenhadas com carateres tipográficos. Se, como dizem, o ato de ler está em crise nos dias que correm, a capacidade de escrever, em contrapartida, está mais forte do que nunca. Prolifera como os cogumelos silvestres em terreno húmido. Valter Hugo Maia surgiu no meu quadro de referências como uma dica de leitura, proferida à beira-mar e em tempo de praia, no cenário duma conversa despreo-cupada a cheirar a protetor solar e com a boca lambuzada duma bola-de-berlim. O tal que tinha uma queda muito peculiar para manejar a prosa poética e cujo nome deveria grafar-se com iniciais minúsculas. Ao que parece, porque a abolição das maiúsculas tor-naria mais célere o registo e decifração das mensagens. Opiniões. Declino seguir tais experimentalismos já gastos pelo uso, até porque não a vi concretizada uma só vez no volume d’A desumanização (2013), o romance que tenho entre mãos e me abriu as portas para os universos narrativos do escritor luso-angolano, com créditos ainda firmados como vocalista num grupo musical e outras habilidades mais nas artes protegidas pelas musas.
Alguém que trata a literatura por tu há longa data confiou-me sentir uma profunda deceção pelo rumo tomado pelos novos talentos da ficção portuguesa, pela tendência de só se identificarem de facto com a matriz cultural do país que os viu nascer ou crescer por mero acaso ou descuido. O desenraizamento seria total e programático. Acredito na autenticidade do aviso que me foi transmitido em tom de lamento sentido sem, todavia, o poder confirmar ou refutar integral-mente. O hábito arreigado de me manter fiel aos vultos já consagra-dos nestas lides das letras que contam histórias tem-me afastado do convívio dos que ocupam o horizonte ainda longínquo duma canoni-zação futura. A minha entrada neste universo inventivo do terceiro milénio, materializada no relato em apreço, veio dar certa razão ao diagnóstico traçado em jeito de boca provocatória, de boutade diver-tida ou de sarcasmo dorido. Coincidências ou talvez não. Os dados estão lançados na pesquisa e os resultados à vista. A incursão noutros instâncias narrativas destas gerações das derradeiras pós-modernidades terá de esperar por novas oportunidades.
A verdade é que o relato se faz no idioma materno, que aprendeu a modelar com sotaque africano e europeu ao longo de quatro décadas e picos de aprendizagens existenciais, mas com localização na remota Islândia, país de vulcões semiadormecidos e de géiseres bem-acordados, de charnecas geladas, de montanhas cobertas de neve, de fiordes talhados pela força telúrica dos glaciares em perpé-tuo movimento. Podia situar-se na Cochinchina, na Patagónia ou nas paragens recônditas das Terras-do-Nunca, que o efeito de exótico pretendido estaria sempre garantido. Fala-se da Ilha-do-Gelo do Atlântico Norte com o mesmo à-vontade com que se falaria da Terra-do-Fogo do Atlântico Sul ou de qualquer outro finisterræ sem loca-lização precisa num mapa real de terras concretas ou idealizadas. Liberdade criativa perfeitamente legítima na república das letras que, aliás, não põe em causa a qualidade intrínseca à fábula e da tessitura verbal com que é urdida. Um longo monólogo interior da protagonista, completado com um ou outro breve diálogo exterior travado com os deuteragonistas. Memória dolorosa composta com uma mão-cheia de imagens reunidas numa infindável metáfora continuada de duzentas e tantas páginas. Histórias de amor-morte e de paixão-ódio, dicotomias escolhidas para definir a humanidade dos seres pensantes ou a desumanização da sua passagem pela vida. Recordações amargas da irmã gémea da menina bonsai, aquela que foi tragada pela boca de deus antes de tempo, aquela que ao partir deixou o mundo divido por metade ao seu redor, aquela que foi plantada para que germinasse de novo e não germinou.
Depois de concluídos os relatos da menos morta das crianças, o artífice das histórias fingidas conta-nos outra verdadeira. Pessoal. Fá-lo numa nota de autor dirigida aos leitores. Quando nasceu já o seu irmão Casimiro havia morrido. Durante toda a infância imaginou-o à sua imagem. Especular. Sabia-o deitado na terra como se fosse uma semente. E achou que dele brotaria um dia um fruto. Podia ter sido um pêssego, mas não foi. Dessa árvore concebida até à idade adulta surgiu um livro. Este de que se fala. Pretexto para fabricar uma declaração de amor extensível a um país de rara sensibilidade e beleza estética. Esquisita. As raízes, afinal, estavam presentes na fábula desde os primeiros momentos, ainda que fincadas nos fiordes gelados do oeste islandês.
NOTA
Trago para este espaço um texto que publiquei há meia dúzia de anos no Pátio de Letras, porque em tempos natalícios é bom que apela à recuperação duma humanidade perdida e que convém recuperar...
Trago para este espaço um texto que publiquei há meia dúzia de anos no Pátio de Letras, porque em tempos natalícios é bom que apela à recuperação duma humanidade perdida e que convém recuperar...