19 de fevereiro de 2019

Kazuo Ishiguro: a busca das memórias perdidas e o bafo do gigante enterrado

«The giant, once well buried, now stirs. When soon he rises, as surely he will, the friendly bonds between us will prove as knots young girls make with the stems of small flowers.»
Kazuo Ishiguro, The Buried Giant (2015)
A história do Homem está cheia de migrações efetuadas em todos os sentidos. A espécie humana nasceu para andar dum lugar para outro sem descanso e fim à vista, até encontrar um pouso certo entendido como porto seguroAssim os caçadores-recoletores se converteram em agricultores-pastores e de nómadas errantes em sedentários acomodados. Deste modo se explica também o povoamento de todos os recantos habitáveis da terra por uma casta andarilha de primatas que deu início às suas caminhadas planetárias a partir dos confins le-vantinos da África subsariana. O processo tem sido sempre o mesmo, desde o primitivo australopithecus até ao moderno homo sapiens sa-piens, também conhecido por homo viator. Kazuo Ishiguro, o ficcio-nista japonês de língua inglesa, centra-se no rico manancial das invasões bárbaras à antiga Britânia romana nos séculos V e VI e azo à inspiração de recuperar esses tempos conturbados da alta medievalidade europeia. Convida-os depois para as páginas do seu mais recente romance, a que atribui o título algo enigmático de O gigante enterrado (2015).

O desenrolar da ação está todavia longe de corresponder aos alvo-res da conquista do território celta pelas hostes tribais da Germânia e Escandinávia. Os Bretões nativos tinham sido empurrados para a parte ocidental da Ilha e os Saxões se haviam instalado em perma-nência na oriental, prefigurando à distância dos séculos as atuais entidades nacionais do País de Gales e Escócia dum lado e da Ingla-terra do outro. Realidade futura que a tessitura narrativa estrategica-mente ignora. O eixo condutor que a rege centra-se no cruzamento das duas matrizes nucleares da cultura literária europeia, a greco-latina dos relatos de amor e aventuras peregrinas e a judaico-cristã dos livros de amor cortês e cavaleiros andantes. Os povos mediter-rânicos atravessaram as vastas extensões do velho continente e juntaram-se ao universo de referências dos povos insulares dos mares do norte e a fábula principia.

Num mundo assombrado pela presença real ou sonhada de ogres, demónios, elfos, duendes e criaturas sem nome, uma densa neblina de esquecimento abatera-se sobre os seus habitantes, privando-os das memórias remotas e recentes da sua própria existência. Segundo a crença de alguns, essa amnésia coletiva dever-se-ia ao bafo do dragão Querig e às artes mágicas de Merlin. Essa a convicção dum casal de anciãos bretões, Axl e Beatrice, que em flashes rápidos de lucidez retrospetiva se recordam terem tido em tempos um filho que em data incerta tinha partido para outras paragens. A vontade de o reverem leva-os a encetar uma longa viagem à sua procura. Os sucessivos encontros de percurso vão-nos ajudando a recuperar muito gradualmente os elos perdidos duma vida traçada em comum até então apagados dos seus registos mentais. A morte do gigante causador dessas lacunas cognitivas e os devaneios de Sir Gawain, o derradeiro representante dos paladinos do Rei Artur, desempe-nharam um papel decisivo no desfecho da demanda por planícies, rios e montanhas dum devir histórico até então obliterado.

Os feitos e façanhas dos cavaleiros da Távola Redonda contados de boca em boca e de geração em geração desaparecem do horizonte de eventos e as lendas, sagas e gestas são substituídas pelas relações de factos acontecidos e registados nos anais oficiais que atestam a formação do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, relegando o Reino de Camelot para os universos imaginários das utopias literárias. Se se manterá como a conhecemos hoje em dia é que falta saber. A ancestral aliança de forças saxónicas oriundas do continente europeu poderá estar em risco com a saída desordenada do UK da UE, acordando de vez nas nações bretãs de raiz celta o sonho há muito acalentado de obterem a sua autonomia completa do poder britânico. O happy end desejado para esta Brexit em curso pode ser mais problemático de encontrar no mundo real do que o relatado pelo ficcionista no mundo imaginado do faz-de-conta.

5 comentários:

  1. É interessante verificar como Kazuo Ishiguro assimilou a cultura britânica, que tão bem descreve nos seus livros. É um enredo interessante no mundo da ficção... Vamos assistindo de camarote ao Brexit, que já prevemos desastroso para todos, descendentes de bretões, saxões e demais povos europeus...

    ResponderEliminar
  2. Li um livro deste autor e foi uma desilusão.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O mundo dos livros é mesmo assim: uns surpreendem-nos outros desiludem-nos...

      Eliminar
  3. Je pense que c’est très intéressant comme livre je vais découvrir comme auteur et mérite du prix Nobel de littérature de 2017.

    ResponderEliminar