28 de março de 2019

Mario Vargas Llosa: as chantagens da aranhita e a herança do herói discreto

«Y, una vez más, como tantas en su vida, Felícito recordó las palabras de su padre antes de morir: “Nunca te dejes pisotear por nadie, hijo. Este consejo es la única herencia que vas a tener”. Le había hecho caso, nunca se había dejado pisotear.»
Mario Vargas Llosa, Él héroe discreto (2013)
Uma das marcas distintivas do homo sapiens é a de saber que um dia deixará de existir, que o nascimento precede a morte e que a vida é um breve momento de passagem do tudo que é nada para o nada que é tudo. Ideia pouco cómoda para quem tem horror ao vazio e adora sonhar com o infinito. A idealização de seres imunes ao destino humano deve ser tão antiga como a própria capacidade de perspetivar o porvir. O homem criou os deuses à sua imagem e semelhança ainda que teime em afirmar exatamente o contrário. Projetou a superação da angústia certa do imanente ancorado na esperança duvidosa do transcendente. Em desespero de causa, arquitetou a hipótese de franquear as portas da eternidade através dos feitos realizados ao longo do trajeto e do seu registo na memória dos vindouros. O conceito é desenvolvido por Mario Vargas Llosa em cada uma das páginas d’O herói discreto (2013). Fá-lo de modo insistente e peculiar. Na lenda helénica, Aquiles escolhe morrer jovem e lembrado de todos; no relato peruano, o protagonista prefere morrer velho e ignorado de todos. Formas de alcançar a glória que os verdadeiros heróis são capazes de entender e atingir. 

As súmulas inscritas na contracapa apressam-se a identificar os cenários e agentes da intriga, os centrais e os periféricos, ligados entre si por uma fina teia de chantagens, todas elas sintetizadas por uma enigmática aranhita de cinco patas desenhada com grande relevo na capa da edição original. Refere-se às ameaças de extorsão urdidas contra Felícito Yanaqué, um pequeno empresário de Piura, mas pode aplicar-se também a Ismael Carrera, um bem sucedido empresário de Lima. A história paralela dos dois chama ao convívio dos leitores outras figuras novelescas fundamentais para a tessitura completa da trama. Algumas delas vindas doutros fragmentos de destinos inventados em forma de livro. Gente simples, anónima, gerada por homens e mulheres comuns, mortais como todos nós. O único traço de divindade partilhada por uns e outros reside na renovação da vida transmitida de pais para os filhos, e destes para netos e bisnetos, facto ciclicamente repetido, a transmitir uma ilusão efémera de eternidade. A capacidade de resistir às exigências, intimidações e ultimatos criminosos define o lídimo ato de heroísmo representado neste drama atual do real quotidiano. A ação decorre num palco latino-americano, mas as tábuas da ribalta podiam ser erguidas num qualquer teatro do mundo, que o efeito seria, mutatis mutandi, exatamente o mesmo, sem tirar nem pôr. 

Visto por este prisma específico, a tramoia que corpo à parábola até parece esgotar-se em poucas palavras. Dir-se-ia repartida por duas novelas de dimensão mediana, com outras menores dentro de si, até perfazer o tamanho canónico exigido por um romance. Falácias interpretativas geradas por leituras ingénuas ou precipitadas, alicerçadas em medições tradicionais a que o ato inventivo dos poetas pouca ou nenhuma atenção. Ao invés dos suposto facilitismos formais arrolados, o desenho seguido para caraterizar a sequência alternada de núcleos narrativos que compõem a fábula assenta numa complexa desconstrução discursiva, onde os ecos do fantástico puro e do realismo mágico criam uma cumplicidade assumida e persistente. Os diálogos proferidos pelos atores imaginados pela ficção saltam instantaneamente dum espaço-tempo para outro sem aviso prévio ou transtorno diegético de maior. O fio urdidor de enredos segue a corrente de pensamento duma determinada personagem, como se se tratasse dum monólogo interior sonhado a que o leitor tem livre e imediato acessoFlashes de vidas fingidas como se fossem verdadeiras. O real e o imaginário que habita em nós desde o princípio dos tempos plasmados nas folhas de papel impresso que temos entre mãos. 

A sequência de factos trazidos até nós acaba com o início duma visita a terras europeias. Os herdeiros dos tomadores dos bens materiais do novo mundo viajam à procura dos bens espirituais do velho mundo. Ironia trágica de quem só sublima a grandeza dos bens alheios. Para trás ficaram os heróis discretos do melodrama representado em terras americanas, no outro lado do globo, a meio hemisfério de distância e com um oceano inteiro de permeio. Reconciliados com a vida, transpõem um céu de nuvens e mergulham nos raios de sol que inundavam o interior do avião, passarola voadora para paraísos perdidos a recuperar.

NOTA
Trazido do Pátio de Letras, onde foi publicado há precisamente cinco ano, para celebrar no dia de hoje o aniversário do Mario Vargas Llosa.

2 comentários:

  1. O "link" remete para outra história bem contada pelo autor, mas é um prazer ler este texto de homenagem a Mario Vargas Llosa, que horas tão felizes de leitura nos tem proporcionado!

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