29 de abril de 2019

Vedi! Le fosche notturne spoglie...

CORO DI ZINGARI
Vedi! Le fosche notturne spoglie. | De' cieli sveste l'immensa volta; | Sembra una vedova che alfin si toglie | I bruni panni ond'era involta. | All'opra! all'opra! | Dàgli, | martella. | Chi del gitano i giorni abbella? | La zingarella! || Versami un tratto; lena e coraggio | Il corpo e l'anima traggon dal bere. || Oh guarda, guarda! del sole un raggio | Brilla più vivido nel mio/tuo bicchiere! | All'opra, all'opra... | Chi del gitano i giorni abbella? | La zingarella!
Verdi, Il Trovarore (Atto Secondo, Scena Prima)

Opera nel Colosseo

Na década de 70, o Teatro Nacional de São Carlos deixava por uma ou outra noite o requinte aristocrático da Serpa Pinto e dava umas récitas populares de ópera nas plebeias Portas de Santo Antão. Assisti a algumas dessas produções de luxo nas bancadas de madeira ou do pontapé nas costas do Coliseu dos Recreios, à época a maior sala de espetáculos de Lisboa. Ali ouvi cantar em italiano, francês, alemão e inglês. Ali ouvi as vozes de Vincenzo Bello, Mara Zampieri, Alfredo Kraus e Piero Capuccilli. Ali ouvi as obras de Wagner, Puccini, Mozart, Bizet, Donizetti, Rossini, Gershwin. Il canto lirico era allora di moda tra noi ...

Lembro-me com bastante precisão do desempenho memorável da mezzosoprano italiana Fiorenza Cossotto a encarnar a figura incontornável de Azucena, a zingara criada por Giuseppe Verdi para Il Trovatore (1853). Faço-o agora que me foi dada a possibilidade pelo grupo coral Ossónoba de integrar o «Coro degli Zingari», a anteceder a canzone «Stride la vampa», em que a diva brilhou e bisou. Estudei-o na companhia do meu neto de dois anos, que acompanhou com agrado e bateu palmas no final a versão de bel canto alojada no YouTube conduzida por Riccardo Muti. Finché la pianta e tenera bisogna drizzarla.*

Regressado da andaluza Nerja, ainda trago comigo a sonoridade das palavras revestidas de música que ecoaram na sala de concerto daquela cidade mediterrânica, onde em tempos se gravou o Verano Azul. O meu incondicional teria aplaudido de e exigido um Ancora! Mais do que pelas capacidades canoras do avô, teria vibrado com a arte maior que o grande compositor italiano soube imprimir à cultura operista romântica e de todas as épocas. A intemporalidade do belo ou a sem idade do clássico dá vontade de chamar à colação o apelo vibrante de Giuseppe Verdi e repetir com ele: Torniamo all'antico e sarà un progresso.

NOTA
* Uma versão italiana curiosa do nosso de pequenino é que se torce o pepino.

25 de abril de 2019

Ora esguardae como se fosses presente…

Ora esguardae como se fossees presente…
Fernão Lopes, Crónica de D. João I
Falaria do júbilo, do frenesim, da glória e da coragem do acontecer. Mas calo-me. Antes, olhai. Pois que tudo aconteceu tão pleno, o quê?, ah sim, era ainda Abril, as pessoas sorrindo, mesmo ali, iam e vinham ao longo da rua, seiva no emaranhado das pálpebras, estrépito de muitas emoções rolando corpo inteiro.

E, no entanto, desvelada foi a vigia, como se cada um ainda em seu degrau, e depois os olhos postos no meio da sua marcha. Por outro lado, é verdade também que parecíamos de visita ‑ das serras, da mão direita e da mão esquerda dos rios, dos ribeirões, da campina, das curvas por entre os barrancos, do vento esfarrapado contra os penedos, do bebedouro das aves, dos telheiras e das traseiras onde o crepúsculo amaciava a chuva. Como se chegássemos em cavalo branco, o sol saindo-nos ao caminho, braceletes baloiçando lucilando na Natureza, caminho morno, sim.

Havia um espaço que era o do gesto literário. Eu via-o logo de manhã, os lidares eram o de gente muito mexida, olhávamos para o relógio, que horas, são?, estávamos sempre dentro da tabela, e já nem fazia mal que falássemos alto, nos campos o arado bordava a terra fundo, as lombas e os cabeços preparando-se para o afago de um outra bafo.
Olga Gonçalves, Ora Esguardae, 1982

21 de abril de 2019

O Cordeiro Místico & O Coelho Pascal

JOSEFA D'ÓBIDOS

Cordeiro Místico (c. 1660-1670)

[Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo - Évora]
AMÊNDOAS - FOLARES - OVOS

As festividades da Páscoa judaica (פֶּסַח = pesach ou pesaḥ) estão estreitamente ligadas à saída do povo hebreu do cativeiro egípcio. As comemorações da Páscoa cristã (Πάσχα = pascha) começaram a simbolizar a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Os rituais de passagem cíclicos narrados no Êxodo e nos Evangelhos resultam certamente dum eco longínquo de tradições religiosas ancestrais que os dois monoteísmos bíblicos adaptaram muito bem à sua maneira.

As celebrações pascais pós-modernas atuais renderam-se de vez à gulodice pantagruélica da quadra e deitaram para trás das costas a frugalidade exemplar atribuída a santos e tzadikim. Os ovos cozidos abandonaram os folares tradicionais onde viviam e converteram-se em amêndoas cobertas de açúcar colorido. O cordeiro místico ainda persiste nas telas barrocas dos museus mas o que está na moda são mesmo os coelhos de chocolate das pastelarias e supermercados.

17 de abril de 2019

E depois tudo são tios e tias

Dona Maria I & Dom Pedro III
Miguel António do Amaral (1710-1780)
[Lisboa, Museu Nacional dos Coches]

Primeiro aos meus, depois aos alheios...

Quando andava na quarta classe a decorar a lista completa dos reis e rainhas de Portugal, fez-me alguma confusão o facto de se passar dum Pedro II para um Pedro IV, sem se referir em parte alguma a existência dum Pedro III. Cheguei a levantar a hipótese de se tratar dum lapso cometido pelo manual de História adotado. Mais tarde apercebi-me tratar-se do marido de Dona Maria I. Descobri também que o primeiro rei consorte português era tio paterno da primeira rainha soberana portuguesa. Negócios ancestrais de família que as cabeças coroadas de antanho tão bem sabiam gerir.

A fina flor brasonada sempre tentou preservar os privilégios que teria recebido ab æterno por graça divina. E como estabelecer relações matrimoniais entre primo e prima ou cunhado e cunhada passou a ser coisa corriqueira, que se case o tio com a sobrinha. Foi o que fez Dom Afonso V de Avis com Joana de Trastâmara, convertendo a Beltraneja em Excelente Senhora para assim se tornar consorte real de jure da rainha de facto de Leão e Castela. Projetos dinásticos falhados do Africano nos resultados indecisos obtidos na Batalha do Toro. Por vezes tem-se mais olhos que a barriga.

Face às endogamias aristocráticas referidas, as familygates plebeias reportadas pelos mass media são coisa miúda e de pouco valor. É verdade que em termos práticos, a Monarquia continua a dar cartas à República. Esta bem se esforça por manter uma certa carga fidalga de sangue azul no dia a dia que corre. Substitui-se a rainha consorte por uma primeira-dama de pacotilha, figura protocolar inexistente entre nós, mas tratada como se existisse ou tivesse suporte legal para tal. Invenção de pouca monta que em nenhum caso terá de ser tia ou sobrinha do chefe de estado seu marido.

9 de abril de 2019

Michel Houellebecq: a serotonina ou a demanda do bem-estar e da felicidade

« C'est un petit comprimé blanc, ovale, sécable. Il ne crée, ni ne transfor-me ; il interprète. Ce qui était définitif, il le rend passager ; ce qui était inéluctable, il le rend contingent. Il fournit une nouvelle interprétation de la vie – moins riche, plus artificielle, et empreinte d'une certaine rigidité. Il ne donne aucune forme de bonheur, ni même de réel soulagement, son action est d'un autre ordre : transformant la vie en une succession de formalités, il permet de donner le change. Partant, il aide les hom-mes à vivre, ou du moins à ne pas mourir – durant un certain temps. »
Michel Houellenecq, Sérotinine (2019)
A serotonima sanguínea é uma hormona segregada no aparelho di-gestivo e na estrutura cerebral que regulariza o trânsito gastrointesti-nal e atua sobre o sistema nervoso central. Assim rezam as entradas dos dicionários. Está sobretudo ligada ao processo pessoal da auto-estima e ao reconhecimento obtido no seio dum grupo. Quando pro-duzida pelos fármacos antidepressivos, inibe a síntese da testostero-na, contrariamente ao verificado no estado natural. Estas são já as definições fornecidas por Michel Houellebecq no sétimo romance re-gistado na lista completa de obras publicadas, com o título original de Sérotonine (2019). Um dia destes a tradução portuguesa ainda aparece por aí. *

O relato de recorte autobiográfico é-nos apresentado como uma ca-minhada inexorável para a morte. O emissor interno debita-nos esse desfecho anunciado através dum longo processo depressivo de sofrimento psíquico e apagamento irreversível da vontade de viver. Para evitar a catástrofe iminente, Florent-Claude Labrouste recorre sem resultados palpáveis ao revolucionário Captorix, um pequeno comprimido branco, oval e ranhurado posto ao serviço da fábula. Tinha então 46 anos de idade e uma previsão de poucos mais à sua frente. Suposições hipotéticas que o realismo narrativo assumido impede de concretizar. O ato de escrita retrospetiva situa-se num futuro indeterminado posterior à presidência francesa de Emmanuel Macron, o que nos remete com alguma imprecisão para meados ou finais da década de 20 ou inícios da seguinte.

Em declaração registada na contracapa do livro, o autor afirma serem as suas crenças limitadas mas violentas e acreditar na possibilidade do reino restrito do amor. Esse o perfil traçado pelo relator interno que dá voz à narrativa. Incapaz de alimentar uma relação duradoura a dois, acaba por se deixar vencer por uma paixão incontrolável que o conduzirá às portas dum suicídio várias vezes referido e nunca concretizado. Kate, Claire, Marie-Hélène, Camille, Tam e Yuzu são alguns dos nomes duma vasta galeria pessoal de casos falhados, todos eles efémeros e sem retorno possível. Uma dinamarquesa, uma francesa, uma brasileira, uma luso-descente, uma jamaicana e uma japonesa. Apatia, solidão, tibieza. Um vazio existencial total em perfeito contraste com a plenitude exemplar experienciada pelos pais, no dia em que escolheram morrer conjuntamente para poderem ser sepultados um ao lado do outro, a testemunhar sem margem para dúvidas a viabilidade duma história de amor eterno.         

A separação abrupta do protagonista da filha dos bem-sucedidos imi-grantes alentejanos e duma inabilidade congénita bastamente con-fessada para reatá-la atravessam toda a tessitura argumentativa do livro. De permeio fica uma revista exaustiva dos primeiros tempos do terceiro milénio francês, europeu e ocidental em geral, nas suas múltiplas relações com o mundo globalizado. Das imediações da estação naturista de Al Alquian andaluza, da torre Totem ou do hotel Mércure parisienses, da gîte ou bungalow normandos, as grandes problemáticas dos nossos dias atravessam o testemunho pessoal do engenheiro agrónomo e narrador do texto. lhe faltou antever o movimento contestatário dos coletes amarelos, a provar por a+b que as conjunturas históricas acontecem sempre de modo imprevisível, deitando por terra as antecipações estruturais desenhadas pelo discurso literário. Que nos reste um pouco a esperança, para que os cenários imaginários de caos postos em palco pela ficção se afastem de cosmos de rotinas reais feitas-desfeitas-refeitas a cada momento desta nossa existência quotidiana.

(*) - Apareceu nas livrarias portuguesas devidamente traduzido para português a 21 de maio de 2019, pelo que a espera não foi assim tão longa.  

7 de abril de 2019

Mari Trini: canciones a mi manera...

           Mari Trini    

não me recordo quando é que ouvi Mari Trini pela primeira vez. Os anos 70 mal tinham começado e já era uma das minhas vozes preferidas. Ouvi-a vezes sem conta em formato EP e K7. Os LP e os CD vieram mais tarde. Agora a via mais fácil de acesso é o You Tube alojado na Net. Mudam-se os tempos, mudam-se as siglas, mudam-se os canais, mas fica o talento para sempre.

Vi-a atuar ao vivo no Casino de Montijo, província de Badajoz. Fi-lo com os meus amigos extremeños. Corria o verão de 74. Seria uma tarde de domingo. As férias estavam no seu auge. A sala estava repleta. A vontade de assistir ao show era enorme. Chegou vestida de branco. Um lenço ao pescoço com um MT bordado. Guitarra na mão. E as palavras cantadas tomaram conta do espaço.  

O concerto foi todo ele alinhado com temas dos Amores (1970) e do Escúchame (1971). Impossível ficar indiferente. Os restantes álbuns depois editados não lograram sobrepor-se ao impacto que esses temas de juventude haviam granjeadoYo no soy esa que te imaginas | una señorita tranquila y sencilla | Que un día abandonas y siempre perdona  | Esa niña si, no | Esa no soy yo...

Um dos nomes maiores do canto hispânico partiu dez anos. Silen-ciosa, sem dizer adeus, numa noite calada. Discreta como sempre. Mañana me ire despacio | sin dejar ninguna huella. A verdade das palavras cantadas foge por vezes à verdade das palavras por can-tarPartiu e deixou muitas marcas nas canções cantadas à sua ma-neira. Canciones que lleva el viento | por su torpe melodía...

1 de abril de 2019

April Fools' Day

A Laughing Fool

Jacob Cornelisz. van Oostsanen (ca. 1500)
A verdade da mentira ou a mentira da verdade
Westminster resolveu discutir a petição pública online de revogação do artigo 50 para pôr termo ao Brexit no dia das mentirasApril Fools' Day ou All Fools' Day, dirão os súbditos de Sua MajestadeAté ape-tece rir mas é algo muito sério. É que as fake news fazem pouco ou nenhum sentido no Primeiro de Abril quando andam à solta o ano inteiro sem pedir licença a ninguém.

Enquanto os debates parlamentares decorrem na Lower House neste dia oficial das patranhas, tretas e tangas mil, dá vontade de recordar o Paradoxo do Mentiroso. Se um indivíduo declarar «Estou a mentir», então se for verdade é falso e se for falso é verdadeiro. Deve ser por isso que os políticos da nossa e doutras praças só se permitem dizer «Eu sou a verdade».

As mentiras disfarçadas de verdade invadiram de tal modo esta nossa aldeia global, que continuar a alimentar a ilusão fantasista da conversão do Paraíso perdido num Paraíso recuperado, após a saída libertadora do angélico UK da pérfida UE, é pura perda de tempo. Nesta metamorfose épica pós-Brexit nem John Milton tem poder para valer ao caricato John Bull.

Neste engano de sentidos prometidos a torto e a direito, chamemos com apreço os quatro elementos de Giuseppe Arcimboldo, o grande mestre maneirista dos embustes pintados com arte. Sobre a verdade da mentira ou a mentira da verdade plebiscitada pela imortal Albion, digamos: foi tudo por ÁGUA abaixo, foi um AR que lhe deu, foi um FOGO de palha, foi TERRA mal semeada.
I quattro elementi di Arcimboldo:  Acqua - Aria - Fuoco - Terra  (1566 - 1570)