« C'est un petit comprimé blanc, ovale, sécable. Il ne crée, ni ne transfor-me ; il interprète. Ce qui était définitif, il le rend passager ; ce qui était inéluctable, il le rend contingent. Il fournit une nouvelle interprétation de la vie – moins riche, plus artificielle, et empreinte d'une certaine rigidité. Il ne donne aucune forme de bonheur, ni même de réel soulagement, son action est d'un autre ordre : transformant la vie en une succession de formalités, il permet de donner le change. Partant, il aide les hom-mes à vivre, ou du moins à ne pas mourir – durant un certain temps. »Michel Houellenecq, Sérotinine (2019)
A serotonima sanguínea é uma hormona segregada no aparelho di-gestivo e na estrutura cerebral que regulariza o trânsito gastrointesti-nal e atua sobre o sistema nervoso central. Assim rezam as entradas dos dicionários. Está sobretudo ligada ao processo pessoal da auto-estima e ao reconhecimento obtido no seio dum grupo. Quando pro-duzida pelos fármacos antidepressivos, inibe a síntese da testostero-na, contrariamente ao verificado no estado natural. Estas são já as definições fornecidas por Michel Houellebecq no sétimo romance re-gistado na lista completa de obras publicadas, com o título original de Sérotonine (2019). Um dia destes a tradução portuguesa ainda aparece por aí. *
O relato de recorte autobiográfico é-nos apresentado como uma ca-minhada inexorável para a morte. O emissor interno debita-nos esse desfecho anunciado através dum longo processo depressivo de sofrimento psíquico e apagamento irreversível da vontade de viver. Para evitar a catástrofe iminente, Florent-Claude Labrouste recorre sem resultados palpáveis ao revolucionário Captorix, um pequeno comprimido branco, oval e ranhurado posto ao serviço da fábula. Tinha então 46 anos de idade e uma previsão de poucos mais à sua frente. Suposições hipotéticas que o realismo narrativo assumido impede de concretizar. O ato de escrita retrospetiva situa-se num futuro indeterminado posterior à presidência francesa de Emmanuel Macron, o que nos remete com alguma imprecisão para meados ou finais da década de 20 ou inícios da seguinte.
Em declaração registada na contracapa do livro, o autor afirma serem as suas crenças limitadas mas violentas e acreditar na possibilidade do reino restrito do amor. Esse o perfil traçado pelo relator interno que dá voz à narrativa. Incapaz de alimentar uma relação duradoura a dois, acaba por se deixar vencer por uma paixão incontrolável que o conduzirá às portas dum suicídio várias vezes referido e nunca concretizado. Kate, Claire, Marie-Hélène, Camille, Tam e Yuzu são só alguns dos nomes duma vasta galeria pessoal de casos falhados, todos eles efémeros e sem retorno possível. Uma dinamarquesa, uma francesa, uma brasileira, uma luso-descente, uma jamaicana e uma japonesa. Apatia, solidão, tibieza. Um vazio existencial total em perfeito contraste com a plenitude exemplar experienciada pelos pais, no dia em que escolheram morrer conjuntamente para poderem ser sepultados um ao lado do outro, a testemunhar sem margem para dúvidas a viabilidade duma história de amor eterno.
A separação abrupta do protagonista da filha dos bem-sucedidos imi-grantes alentejanos e duma inabilidade congénita bastamente con-fessada para reatá-la atravessam toda a tessitura argumentativa do livro. De permeio fica uma revista exaustiva dos primeiros tempos do terceiro milénio francês, europeu e ocidental em geral, nas suas múltiplas relações com o mundo globalizado. Das imediações da estação naturista de Al Alquian andaluza, da torre Totem ou do hotel Mércure parisienses, da gîte ou bungalow normandos, as grandes problemáticas dos nossos dias atravessam o testemunho pessoal do engenheiro agrónomo e narrador do texto. Só lhe faltou antever o movimento contestatário dos coletes amarelos, a provar por a+b que as conjunturas históricas acontecem sempre de modo imprevisível, deitando por terra as antecipações estruturais desenhadas pelo discurso literário. Que nos reste um pouco a esperança, para que os cenários imaginários de caos postos em palco pela ficção se afastem de cosmos de rotinas reais feitas-desfeitas-refeitas a cada momento desta nossa existência quotidiana.
(*) - Apareceu nas livrarias portuguesas devidamente traduzido para português a 21 de maio de 2019, pelo que a espera não foi assim tão longa.
O relato de recorte autobiográfico é-nos apresentado como uma ca-minhada inexorável para a morte. O emissor interno debita-nos esse desfecho anunciado através dum longo processo depressivo de sofrimento psíquico e apagamento irreversível da vontade de viver. Para evitar a catástrofe iminente, Florent-Claude Labrouste recorre sem resultados palpáveis ao revolucionário Captorix, um pequeno comprimido branco, oval e ranhurado posto ao serviço da fábula. Tinha então 46 anos de idade e uma previsão de poucos mais à sua frente. Suposições hipotéticas que o realismo narrativo assumido impede de concretizar. O ato de escrita retrospetiva situa-se num futuro indeterminado posterior à presidência francesa de Emmanuel Macron, o que nos remete com alguma imprecisão para meados ou finais da década de 20 ou inícios da seguinte.
Em declaração registada na contracapa do livro, o autor afirma serem as suas crenças limitadas mas violentas e acreditar na possibilidade do reino restrito do amor. Esse o perfil traçado pelo relator interno que dá voz à narrativa. Incapaz de alimentar uma relação duradoura a dois, acaba por se deixar vencer por uma paixão incontrolável que o conduzirá às portas dum suicídio várias vezes referido e nunca concretizado. Kate, Claire, Marie-Hélène, Camille, Tam e Yuzu são só alguns dos nomes duma vasta galeria pessoal de casos falhados, todos eles efémeros e sem retorno possível. Uma dinamarquesa, uma francesa, uma brasileira, uma luso-descente, uma jamaicana e uma japonesa. Apatia, solidão, tibieza. Um vazio existencial total em perfeito contraste com a plenitude exemplar experienciada pelos pais, no dia em que escolheram morrer conjuntamente para poderem ser sepultados um ao lado do outro, a testemunhar sem margem para dúvidas a viabilidade duma história de amor eterno.
A separação abrupta do protagonista da filha dos bem-sucedidos imi-grantes alentejanos e duma inabilidade congénita bastamente con-fessada para reatá-la atravessam toda a tessitura argumentativa do livro. De permeio fica uma revista exaustiva dos primeiros tempos do terceiro milénio francês, europeu e ocidental em geral, nas suas múltiplas relações com o mundo globalizado. Das imediações da estação naturista de Al Alquian andaluza, da torre Totem ou do hotel Mércure parisienses, da gîte ou bungalow normandos, as grandes problemáticas dos nossos dias atravessam o testemunho pessoal do engenheiro agrónomo e narrador do texto. Só lhe faltou antever o movimento contestatário dos coletes amarelos, a provar por a+b que as conjunturas históricas acontecem sempre de modo imprevisível, deitando por terra as antecipações estruturais desenhadas pelo discurso literário. Que nos reste um pouco a esperança, para que os cenários imaginários de caos postos em palco pela ficção se afastem de cosmos de rotinas reais feitas-desfeitas-refeitas a cada momento desta nossa existência quotidiana.
(*) - Apareceu nas livrarias portuguesas devidamente traduzido para português a 21 de maio de 2019, pelo que a espera não foi assim tão longa.
"Cheira-me" a uma leitura deprimente...
ResponderEliminarUm cheiro bem cheirado. A escrita de Houellebecq baseia-se muito nesse sentimento de depressão compulsiva, mas nada que uma leitura atenta não possa superar...
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