Ora esguardae como se fossees presente…Fernão Lopes, Crónica de D. João I
Falaria do júbilo, do frenesim, da glória e da coragem do acontecer. Mas calo-me. Antes, olhai. Pois que tudo aconteceu tão pleno, o quê?, ah sim, era ainda Abril, as pessoas sorrindo, mesmo ali, iam e vinham ao longo da rua, seiva no emaranhado das pálpebras, estrépito de muitas emoções rolando corpo inteiro.
E, no entanto, desvelada foi a vigia, como se cada um ainda em seu degrau, e depois os olhos postos no meio da sua marcha. Por outro lado, é verdade também que parecíamos de visita ‑ das serras, da mão direita e da mão esquerda dos rios, dos ribeirões, da campina, das curvas por entre os barrancos, do vento esfarrapado contra os penedos, do bebedouro das aves, dos telheiras e das traseiras onde o crepúsculo amaciava a chuva. Como se chegássemos em cavalo branco, o sol saindo-nos ao caminho, braceletes baloiçando lucilando na Natureza, caminho morno, sim.
Havia um espaço que era o do gesto literário. Eu via-o logo de manhã, os lidares eram o de gente muito mexida, olhávamos para o relógio, que horas, são?, estávamos sempre dentro da tabela, e já nem fazia mal que falássemos alto, nos campos o arado bordava a terra fundo, as lombas e os cabeços preparando-se para o afago de um outra bafo.
Olga Gonçalves, Ora Esguardae, 1982
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