«A cidade de Ulisses. O nome parecia-nos irrecusável. Havia pelo menos dois mil anos que surgira a lenda de que fora Ulisses a fundar Lisboa. Não se podia ignorá-la, como se nunca tivesse existido.»Teolinda Gersão, A cidade de Ulisses (2011)
Rezam os registos da memória coletiva que Héracles terá sido o herói mais popular de toda a mitologia grega antiga, entidade semidivina que o panteão romano acolheu ante si de braços abertos, adaptou de bom grado à sua realidade cultural e passou a conhecer com a desig-nação etrusca de Hércules. As referências que lhe são outorgadas pelas obras que sobreviveram à voragem de Cronos são infindáveis. Todavia, esse prestígio passou a ser repartido com Odisseu, sobretu-do a partir do momento em que Homero substituiu o papel de figu-rante que lhe dera na Ilíada pelo de cabeça de cartaz na Odisseia. Teolinda Gersão aproveita essa aura de glória que o devir histórico lhe granjeara, designa-o pela variante onomástica latina que a tradi-ção mediterrânica abraçara e converte-o no fio condutor privilegiado d’A cidade de Ulisses (2011), romance que dá corpo à lenda de ter sido o rei de Ítaca o fundador de Lisboa.
Três mil e tal anos após as façanhas épicas, o artífice do cavalo de Troia, o mais humano dos semideuses criados pela fantasia helénica, o protagonista inaugural dum extenso ciclo de aventuras andarilhas, o inspirador de tantos anseios de infinito sempre sonhado e nunca al-cançado, onde o desenho romanesco embrionário já se faz sentir, empresta o nome a uma exposição de pintura proposta pelo Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. A fama que o passado fabuloso lhe dera aviva os traços por si deixados na Ulisseum-Olisipo lusitana e demais etimologias improváveis de bati-zar a futura metrópole e capital imperial dum país com fronteiras globais, inspira um relato de amor-e-morte revelado a posteriori pela voz masculina de quem o viveu e sobreviveu para contá-lo como testemunha privilegiada. A preceito. Como convém numa imitação credível de verdades possíveis. Três vertentes duma mesma sequên-cia de eventos banais, mas engrandecidos com a dimensão existen-cial que a condição humana lhe confere.
Paulo Vaz recorda o affaire amoroso com Cecília Branco. Do alfa ao ómega, de ponta a ponta, de cabo a rabo, sem rebuços e ao sabor da pena. Memórias soltas, coisas isoladas, flashes imprecisos, a fluírem em catadupas, de montante a jusante, a preencherem as lacunas ins-taladas na mente do relator, carente de registos escritos minuciosos do já acontecido, de documentarem com precisão as marcas causa-das pela medida arbitrária da duração dos factos. O pintor de profis-são e narrador de ocasião recorre à evocação de sucessos dos tem-pos idos para fazer o ponto da situação dos tempos do porvir. A pala-vra crise reina. Bancarrota, corrupção, impostos, dívida, falência, fome, buraco orçamental e FMI seguem-lhe a peugada e dão-lhe um toque preciso dos cenários onde se tem representado o drama social português. Cíclico. Preferia que a escolha de tais termos se não fizesse em prejuízo de tantos outros menos prosaicos que a língua está sempre pronta a pôr à disposição dos falantes. O já lido e relido, o já ouvido e reouvido nos jornais, rádios e televisões do nosso dia até dia mediático, mil e uma vezes dito e redito, à exaus-tão, em linhas e linhas de lamúrias mal contidas, registadas em contínuos períodos-parágrafos, sem parar, em páginas e páginas da ficção ultrarrealista que temos entre mãos, sem piedade, acaba por transformar, sem recuo, o prazer da leitura num fardo carregado a contragosto, alvedrio a que só a afeição à literatura concede, de longe em longe, um passe altruísta de livre trânsito.
No período micénico da cultura europeia, Penélope resiste a vinte anos de espera exemplar pelo regresso do marido. Tece de dia a manta que desfaz à noite. Ulisses partira contrariado para uma guerra gerada pelo arrojo de Páris e volúpia de Helena. Retorna a casa sem lufa-lufas no andar e com planos de desforra no agir. Reocupa o trono, restaura a lei, recupera a mulher. Um trajeto de ardis. No período pós-moderno da cultura ocidental, os sinais heroicos de fidelidade, abalizados por duas décadas de separação conjugal efetiva, é uma ilusão utópica só possível na feição diegé-tica da realidade. O caso de Paulo e Cecília está repartido por três momentos estruturais canónicos: encontro-desencontro-reencontro. Afiança uma nota crítica registada na contracapa do romance termi-nar essa história escandalosamente bem. Não contradigo a autori-dade convocada pelos editores para dar uma maior visibilidade à obra. Limito-me a precisar que o casal se afasta após um primeiro revés para recuperar o equilíbrio perdido em cenários alternativos. Como soe dizer-se, são incomensuráveis os caminhos que condu-zem a um apetecido e novelesco happy end.
NOTA
A cidade de Ulisses também é a cidade de Santo António, duas matrizes culturas complementares a motivarem a transferência deste texto do Pátio de Letras para este espaço de histórias contadas e relembradas, no dia em que a cidade de Lisboa celebra as suas festas anuais.
NOTA
A cidade de Ulisses também é a cidade de Santo António, duas matrizes culturas complementares a motivarem a transferência deste texto do Pátio de Letras para este espaço de histórias contadas e relembradas, no dia em que a cidade de Lisboa celebra as suas festas anuais.
Belo texto, cuja releitura é um prazer! Obrigada, Pro., por esta segunda partilha!
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