«O meu olhar deambulou pela estante, em vagarosas sinusoides, roçou as lombadas da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, o Les Rougon-Macquard todo encadernado e susteve-se, melancólico, ao encontrar a Servidão humana de Somerset Maugham; aquele livro era dele: o vinco na encadernação, causado pelo corta-papéis do meu pai, o "M" de Maugham muito sumido, quase poderia garantir que o feitio dos meus dedos, as marcas da minha transpiração estavam lá. Tinha-o emprestado há que séculos, perdera-lhe o rasto. Luís Jorge nunca mo devolvera. Tê-lo-ia lido?»
Mário de Carvalho«Por onde tens andado?»IN Burgueses somos nós todos ou ainda menosLisboa: Porto Editora, 2018, p. 40.
O meu olhar fixou-se na estante onde durante anos esteve alojada a Servidão humana (1915) de Somerset Maugham, mesmo ao lado dos restantes exemplares da coleção Dois Mundos, editada pelos Livros do Brasil e comprados na Feira do Livro de Lisboa, a abrir então os braços aos leitores nas alamedas da avenida da Liberdade. Fazia companhia a'O fio da navalha (1944) e ao Exame de consciência (1938), deixados órfãos do irmão mais velho e à espera dum regresso mais do que duvidoso ao lar comum. Nenhum deles detém um «M» de Maugham vincado na encadernação causado por um qualquer corta-papéis, até porque só dispõem de lombadas em cartão já muito maltratadas pelo tempo. Emprestei-o a alguém que se esqueceu de mo devolver. Partiu sem um «vê» de volta na ponta e por lá anda sem um «erre» de retorno previsto.
c d
Abri um livro de contos de Mário de Carvalho e topei com a referência a um mesmo testemunho de perda irreversível. Mote, Glosa & Cabo tecladas no PC a 4 mãos por um duplo «Eu»: o fictício e o factual. Os livros têm destas histórias singulares que só são entendidas por alguns. Les beaux esprits se rencontrent, o que dito no inglês do mestre britânico talvez corresponda ao incisivo fine minds meet...
Um sentimento de perda que muitas vezes nos assalta, quando percorremos as estantes à procura de um livro especial que não encontramos porque em determinado momento o quisemos partilhar com alguém... O momento de reencontro será uma benesse, que a mim nunca aconteceu, reencontrando apenas o mesmo título, com a mesma capa, por um simples acaso num alfarrabista...
ResponderEliminarAs minhas estantes acusam muitas ausências permanentes que uma reposição posterior está longe de colmatar. As anotações inscritas nas margens viajam sempre com o exemplar único que as aloja. O mais doloroso é saber para onde alguns deles foram e ter a certeza que nunca mais voltarão. Assim é a realidade de quem tem um apego muito especial aos livros e às marcas visíveis neles registadas a pautarem o momento da viagem no seu interior. Como lá diz a velha sabedoria popular: «Quem empresta não melhora».
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