25 de junho de 2019

Mote, Glosa & Cabo, com um «M» de Maugham na lombada de cartão

«O meu olhar deambulou pela estante, em vagarosas sinusoides, roçou as lombadas da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, o Les Rougon-Macquard todo encadernado e susteve-se, melancólico, ao encontrar a Servidão humana de Somerset Maugham; aquele livro era dele: o vinco na encadernação, causado pelo corta-papéis do meu pai, o "M" de Maugham muito sumido, quase poderia garantir que o feitio dos meus dedos, as marcas da minha transpiração estavam lá. Tinha-o emprestado há que séculos, perdera-lhe o rasto. Luís Jorge nunca mo devolvera. Tê-lo-ia lido?»
Mário de Carvalho
«Por onde tens andado?»
IN Burgueses somos nós todos ou ainda menos
Lisboa: Porto Editora, 2018, p. 40.
O meu olhar fixou-se na estante onde durante anos esteve alojada a Servidão humana (1915) de Somerset Maugham, mesmo ao lado dos restantes exemplares da coleção Dois Mundos, editada pelos Livros do Brasil e comprados na Feira do Livro de Lisboa, a abrir então os braços aos leitores nas alamedas da avenida da Liberdade. Fazia companhia a'O fio da navalha (1944) e ao Exame de consciência (1938), deixados órfãos do irmão mais velho e à espera dum regresso mais do que duvidoso ao lar comum. Nenhum deles detém um «M» de Maugham vincado na encadernação causado por um qualquer corta-papéis, até porque só dispõem de lombadas em cartão já muito maltratadas pelo tempo. Emprestei-o a alguém que se esqueceu de mo devolver. Partiu sem um «vê» de volta na ponta e por lá anda sem um «erre» de retorno previsto.
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Abri um livro de contos de Mário de Carvalho e topei com a referência a um mesmo testemunho de perda irreversível. Mote, Glosa & Cabo tecladas no PC a 4 mãos por um duplo «Eu»: o fictício e o factualOs livros têm destas histórias singulares que são entendidas por algunsLes beaux esprits se rencontrent, o que dito no inglês do mestre britânico talvez corresponda ao incisivo fine minds meet...

2 comentários:

  1. Um sentimento de perda que muitas vezes nos assalta, quando percorremos as estantes à procura de um livro especial que não encontramos porque em determinado momento o quisemos partilhar com alguém... O momento de reencontro será uma benesse, que a mim nunca aconteceu, reencontrando apenas o mesmo título, com a mesma capa, por um simples acaso num alfarrabista...

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  2. As minhas estantes acusam muitas ausências permanentes que uma reposição posterior está longe de colmatar. As anotações inscritas nas margens viajam sempre com o exemplar único que as aloja. O mais doloroso é saber para onde alguns deles foram e ter a certeza que nunca mais voltarão. Assim é a realidade de quem tem um apego muito especial aos livros e às marcas visíveis neles registadas a pautarem o momento da viagem no seu interior. Como lá diz a velha sabedoria popular: «Quem empresta não melhora».

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