10 de junho de 2019

A grande aflição de Camões…

CAMÕES

Júlio Pomar, 1989

Apólogo Dialogal Quarto,
em que são interlocutores os livros de Justo Lípsio, Trajano Bocalino, D. Francidco de Quevedo e o autor desta obra.


Autor. Escusai a disputa, porque as lástimas e queixas que ali está dando um doente acusam já vossa ponderação por impiedosa. Oh, coitado! Como se mostra dolorido! 

Quevedo. Vozes soam, de grande aflição; mas, se me não engana o eco, portuguesas parecem. 

Bocalino. Pelo menos, não são italianas, nem francesas. 

Lípsio. Nem flamengas, nem latinas. E, de caminho, vos descubro este segredo, como versado nele: sabei que todos os idiomas do mundo tem seu tom particular, sobre que armam sua linguagem. Como latinos, espanhóis e ingleses fazem sobre a letra ON, fran-ceses sobre EA, como já foram os gregos, e são mais frequentes que todos, os etíopes na letra E, os bárbaros das Índias ocidentais se afeiçoaram tanto à letra V, que em quase todas as dicções nela acabam suas cláusulas, donde, se notardes, procedem dous galan-tes secretos: o primeiro, que sem compreensão de palavras se pode averiguar qual seja a língua em que se proferem; o segundo, que pela frequência das letras se descifra qualquer segredo escrito nelas. 

Bocalino. Não lhe faltava mais agora a este flamengo presumido, senão ensinar-nos o A. B. C.! 

Autor. A menos custa de prosa, eu sei já, senhores, quem é o doente

Lípsio. Quem? 

Autor. É o pobre de Luís de Camões, que está ali lançado a um canto, sem que todos os seus cantos tão nobremente cantados lhe negociassem melhor jazigo! 

Bocalino. De que se queixa o famoso poeta português? 

Quevedo. De nós todos se poderá queixar, porque, sendo honra e glória de Espanha, tão mal tornamos por ele, que, se são poucos os que o lem, são menos os que o entendem... 

Dom Francisco Manuel de Melo, Hospital das Letras, 1657

2 comentários:

  1. No dia em que todos falam dele e poucos o leem...

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  2. Na realidade, a maior parte das pessoas conhece Camões porque Os Lusíadas foi leitura obrigatória no liceu... Valeu-me o meu pai, que me explicou as figuras literárias, ou eu não chegaria lá...

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