9 de novembro de 2019

Cavalo de Troia & Urso de Berlim

The Trojan Horse & The Buddy Bear

    Das muralhas de Troia ao muro de Berlim    

Dizem os velhos mitos helénicos, convertidos em lendas e epopeias, terem as muralhas de Ílion sido vencidas pelos Aqueus, depois de as terem cercado ininterruptamente durante dez anos. A conquista e destruição da pólis pelas forças aliadas de Agamémnon terá sido possível com a ajuda dum artefacto de madeira imaginado pela astúcia de Ulisses, o conhecido Cavalo de Troia. Segundo se julga saber, passados mais de três milénios sobre a contenda travada entre gregos e troianos (c. 1250 AEC), o aparato inventado pelo rei de Ítaca mais não seria do que uma espécie de aríete, construído com forma de animal, ou um mero navio de guerra, chamado «cavalo do mar», em cujo interior viajariam as forças beligerantes. No caso também provável da destruição da urbe se dever a um sismo, a escolha dum equídeo dever-se-ia ao facto de Poseidon ser o deus dos cavalos, dos oceanos e dos terramotos. Entre tantas versões duma mesma história, cada um siga a que mais lhe agradar.

Dizem as tradicionais etimologias facilitistas, disfarçadas de verdades imediatas, que o Urso de Berlim derivaria do alemão Bär («urso», [bɛəʳ]), idêntico à sílaba inicial do topónimo (Berlin, [bɜːˈlɪn]). Por isso estaria representado na bandeira e no brasão de armas da grande metrópole estadual e federal germânica e profusamente espalhado em tudo o que é sítio público nos mais diversos formatos. Outra hipótese mais rigorosa defende que todos os nomes de lugares terminados em -in têm uma raiz eslava, passando os seus moradores a serem os habitantes das «terras pantanosas» (berl-/birl + -in). Em termos históricos, a designação da cidade foi-lhe outorgada pelo guerreiro saxão Albrecht I de Brandenburg, o Urso, que a conquistou em meados do século XIIEtimologias e onomásticas à parte, diga-se que a capital da RFA deve o seu atual estatuto à queda do Muro de Berlim, faz no dia de hoje precisamente 30 anos, efeméride celebrada por toda a parte com a pompa e circunstância merecidas.
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As muralhas de Troia e o muro de Berlim estão separados por quase 3300 anos de devir histórico. Entre a entrada vitoriosa do cavalo de madeira pela cidade de Príamo adentro e o final do cativeiro da cidade dos terrenos alagados, cresceram os mitos e contramitos ancestrais micénicos que estiveram na génese da cultura e civilização europeia. O rapto de Helena ativou o pacto dos heróis gregos que a resgataram de Páris e devolveram a Menelau. O império de mil anos prometido por Hitler desfez-se em doze e dividiu o velho continente em dois blocos antagónicos. Os reis rivais da antiga Helénia juntaram-se para vencer o inimigo comum que os ameaçava. Os berlinenses orientais derrubaram as barreiras de cimento armado que dividia a antiga Germânia ao meio e deram as mãos aos berlinenses ocidentais que se encontravam do outro lado da cortina de ferro ou da vergonha. A unificação da Alemanha é também ela uma unificação da Europa. De toda a gente que nela vive, dizem que unida na diversidade.

4 comentários:

  1. Ando a tentar pôr em dia as leituras periódicas, na Visão nº1390 (24-10 a 30-10), vem uma matéria muito interessante: Viagens - pelos caminhos da Alemanha de Leste, escapadelas para lá do muro.
    Gostei muito de a ler, habitualmente não aprecio nada aquele povo, mas, desta vez surpreendi-me pela positiva!

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  2. Adoro 0s mitos da antiguidade, histórias de engenho e arte nem sempre exemplares... Um belo texto para comemorar a queda do muro de Berlim, que infelizmente não serviu de lição aos humanos, nem sempre exemplares nas suas ações...

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  3. Maria da Conceição Andrade16 de novembro de 2019 às 14:12

    "Unida na diversidade". Pois! E agora temos os desejos de construção de muros e da vigilância apertada das fronteiras do Trump e do Vox! Mas quanto a muros, não são só os físicos que temos de considerar. Hoje, erguem-se muros mais difíceis de derrubar: os da intolerância, do medo, do ódio, da ignorância, do fanatismo… Haverá "cavalo de troia" que os derrube?
    O teu texto fez-me recordar bons velhos tempos, quando explorámos a epopeia homérica. Atualmente, só temos anti-heróis, pícaros, mas sem a graça e o chiste do Lazarilho.

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    1. É um diz que disse e continua dizer até que a utopia se concretize com caráter permanente. E sobre os muros e muralhas que por aí andam, só falta encontrar um cavalo adequado aos nossos tempos para os derrubar ou impedir que se ergam. Seguir o exemplo de Berlim, uma cidade unificada apesar das divergências que possam persistir nas gentes que a habitam. Haverá entre eles um ou outro pícara, mas, tal como nos ensina a vida do Lazarillo de Tormes, a resistência marginal às desigualdades sociais passam muitas vezes pela ação marginal dos anti-heróis anónimos…

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