« C'est l'histoire d'un rhinoceros admiré par un sultan et deux rois. Un pachyderme qui a fait le tour du monde et qui a été dessiné par un des plus grands artistes de tous les temps ! Cette histoire se passe il y a fort longtemps : 1515. En ce temps-là, l'Europe explore le globe. L'Inde, cette contrée lointaine et mystérieuse, fascine particulièrement les navigateurs. »Eugène, Ganda (2018)
Quando em 1488 Bartolomeu Dias dobrou o cabo da Boa Esperança, acabava de abrir as portas à rota das especiarias há muito almejada e que Vasco da Gama traçaria em 1498. Portugal dava assim os primei-ros passos como potência marítima hegemónica e pioneiro da globali-zação. Os monarcas da Casa de Avis foram exímios nos expedientes diplomáticos de dar visibilidade ao poder político, económico e cientí-fico que então detinham. A oferta aos grandes potentados europeus de exemplares exóticos da flora e da fauna provenientes dos novos domínios integrados na Coroa foi um deles. Os elefantes e rinoceron-tes levaram a palma a todos os demais. A lista é vasta. Alguns torna-ram-se protagonistas de ficções de sucesso editorial garantido. José Saramago contou-nos as peripécias vividas por Salomão n'A viagem do elefante (2008), o paquiderme que D. João III enviou ao sobrinho, o Arquiduque Maximiliano da Áustria. Catherine Clément revela nas Dix mille guitares (2011) as memórias autobiográficas do rinoceronte Bada de D. Sebastião, para nos darem conta das suas deslocações insólitas pelo velho continente, que o levariam às cortes de Filipe II de Espanha, Rodolfo II da Alemanha e Cristina da Suécia.
O filão foi aproveitado recentemente por Eugène Meltz, dramaturgo e romancista romeno estabelecido no cantão suíço de Vaud, quando se propôs contar a história de Ganda (2018), o rinoceronte indiano que D. Manuel I integrara na embaixada enviada em 1516 ao papa Leão X. Apesar de ter obtido um sucesso relativo nos países francófonos, a crónica ficcionada de sucessos acontecidos encontra-se ainda por traduzir noutros idiomas, o que torna a sua divulgação internacional particularmente reduzida, como será o caso do mundo lusófono onde grande parte da ação decorre. A notícia do livro foi-me dada por uma amiga bretã de longa data que o vira numa livraria de Rennes e mo ofereceria pouco depois em Florença, como prenda muito especial de aniversário. As voltas que um texto literário dá até se entregar de braços abertos a quem o quer receber. E aqui o tenho entre mãos à espera que revele as minhas impressões de leitura.
Distinguem-se os cronistas dos romancistas nos recursos seguidos para manter viva a memória coletiva dos povos. Os primeiros engran-decem/menosprezam os eventos ocorridos, segundo os interesses estratégicos dos reinos e repúblicas envolvidas no relato. Os segun-dos servem-se a seu bel-prazer dos dados recolhidos nos anais oficiais e adaptam-nos ao sabor da pena, para cabal deleite do leitor e proveito do autor. A objetividade ilusória do registo estatal dá lugar à subjetividade real do escrito literário. A odisseia do rinoceronte diplo-mata inicia-se em Goa e termina abruptamente no golfo de Génova, com passagem efémera por Lisboa. Depois de ter vencido as águas oceânicas do Índico e do Atlântico, soçobra nas águas marítimas do Mediterrâneo, sem ter visto o Bispo de Roma no Vaticano, a quem fora enviado pelo Rei de Portugal. A peregrinação do unicórnio Ganda por meio mundo é partilhada pelo cornaca Ossem, que com ele termina abruptamente os seus dias sem honra nem glória, longe da sua amada Hildegarde, mas isso são já contas doutro rosário ou doutros contos por contar.
Dizem os memoriais escritos que o tratador do paquiderme asiático seria um nobre indiano caído em desgraça. O Sultão Muzzafar II de Guzarate livrou-se da sua presença, enviando-o para Goa como seu embaixador junto do Grão-Cão das Índias. E pouco mais se adianta nos relatos dignos de crédito que até nós chegaram. A ficção faz tábua rasa desse testemunho e inventa uma verdade alternativa para colmatar lacunas detetadas e processar dados apreendidos pela rama. Afonso de Albuquerque é promovido a Vice-Rei e Ossem de Cambaia é rebaixado à casta de intocável. A fantasia toma conta do discurso com a roupagem da paródia a resvalar para o anedótico e o burlesco instala-se. Salva-se a figura de Ganda, que Albrecht Dürer imortalizou numa xilografia gravada em Nuremberg que depois espa-lhou às mãos largas por toda a parte. O primeiro rinoceronte a pisar terras europeias está também representado numa das guaritas da Torre de Belém e numa gárgula do Mosteiro de Alcobaça. Ninguém dá por essas esculturas de calcário erodido pela voragem dos séculos. Quem gostar do tom caricatural de chacota, motejo, troça, zombaria, mofa, escárnio ou qualquer outro termo de perfil anedótico capaz de provocar o riso, terá ainda vê-lo desenhado com palavras impressas nas páginas dum romance quase pícaro ou de amor e aventuras pe-regrinas. É só escolher uma das hipóteses disponíveis ou abraçá-las naturalmente a todas.
Embaixadas deveras criativas... e de peso! Deste Ganda só tive conhecimento através das tuas crónicas, pois também não me apercebi da marca da sua presença na Torre de Belém que, afinal, preciso conhecer na companhia de uma guia qualificada...
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