29 de março de 2020

Petrónio e as sátiras latinas do Satyricon

BANCHETTO: FESTA DELLA FAMIGLIA (c. 79EC)
«Nos iam ad triclinium perveneramus, in cuius parte prima procurator rationes accipiebat. Et quod praecipue miratus sum, in postibus triclinii fasces erant cum securibus fixi, quorum imam partem quasi embolum navis aeneum finiebat, in quo erat scriptum: "C. Pompeio Trimalchioni, seviro Augustali, Cinnamus dispensator". Sub eodem titulo et lucerna bilychnis de camera pendebat, et duae tabulae in utroque poste defixae, quarum altera, si bene memini, hoc habebat inscriptum: "III. et pridie kalendas Ianuarias C. noster foras cenat", altera lunae cursum stellarumque septem imagines pictas; et qui dies boni quique incommodi essent, distinguente bulla notabantur.»
Desapareceu mais uma livraria em Faro. Qualquer dia não nenhu-ma. Esta pertencia às Publicações Europa-América que acabam de declarar insolvência. Uma dívida calculada em dois milhões de euros obrigou a casa fundada por Lyon de Castro em 1945 a fechar as portas que a ditadura de Salazar não conseguiu concretizar. Grande parte da minha biblioteca pessoal ostenta a chancela da editora foi escolhida de entre os 51 milhões de livros escritos por cerca de 1900 autores.

Foi aqui nesta pequena loja agora encerrada que adquiri em formato de bolso o Satyricon de Petrónio, composta por volta de 60 EC. A minha passagem pela Faculdade de Letras não me levou à leitura integral ou parcial da mais genuína obra de ficção satírica da literatura romana imperial do tempo de Nero. A descoberta foi feita através da versão filmada por Federico Fellini e estreada a nível global em 1969. No ano em que se celebra o centenário do nascimento do realizador italiano, apeteceu-me rever o filme e reler o livro. Foi o que fiz sem exitação.

No suporte escrito, desconhece-se o início e final das deambulções dos protagonistas. As lacunas de dimensão variada atravessam toda a obra. A sua reconstituição torna-se particularmente difícil ou mesmo impossível. Temos de nos contentar com os episódios que até nós chegaram. O homoerotismo campeia, afastando o modelo diegético latino definitivamente do helénico, que então iniciava o período áureo da sua existência literária já multissecular.

Nas imagens em movimento, a estratégia seguida foi mesmo a de completar o relato com a imaginação criativa do realizador. A estrutura romanesca primitiva mantém-se, sendo entretanto enriquecida com elementos estruturais que asseguram a unidade discursiva de toda a fábula. Assim funciona a Arte em toda a sua plenitude. Assim foi na Antiguidade. Assim é na Modernidade.

8 de março de 2020

Maneirismos, modismos & malabarismos da moda

      Thus go the ladies in Spain upon their pattens       
AS INVENÇÕES DE MODA DO DIABINHO
«Destes sou eu dos mais perversos e endiabrado de todos. Eu fuy o que inventey o tabaco para que os homens perdessem o sentido e regalo do olfato e andassem sempre ennodados delle, e bem se vê que foy invectiva minha vício tanto sem gosto algũ, pois não sofrem os que o tomão, quando espirrão, que lhe digão Dominus tecum”, porque repon-dem para evitá-lo: “Senhores, tabaco!”. E têm por delícia estar sem-pre metendo em pó pelos narizes e bebendo-o em fumo pela boca à imitação do Inferno. Eu inventey os sapatos acolherados com hũ palmo de polivi [= pont-levis] e a sua forquinha diante, em sinal do que merece quem tal uza. Eu inventey os rebuços de meyo olho por licenciar às mu-lheres liberdades, os monhos, as anágoas, os guarda-infantes e outras sarandajes e decotados provocadores de lascívias. Não fallo em capoi-nas, sarambeques, chacoynas, sarabandas e seguidilhas deshonestas, que isto são couzas de nonada para mim.»
Obras do Fradinho da Mão Furada (>1744). Lisboa: FCG-JNICT, 1991, 91-92
COTURNOS - CHAPINS - PONTAS - AGULHAS
A cunha ou calce é tudo aquilo que eleva ou tem a capacidade de alavancar. Em sentido figurado, resolve-se quando uma pessoa influente intervém a favor de outrem. Em termos literais, obtém-se através da introdução dum calço no objeto que pretendemos en-grandecer. O drama ático antigo utilizou-o nos COTURNOS, aumen-tando assim a altura dos atores. Associados às máscaras, aos onkos e à restante indumentária, permitiam uma visibilidade razoável aos espetadores das últimas bancadas do teatro.

O emprego utilitário grego terá sido seguido pelo vestuário europeu dos séculos dourados. A este tipo de calçado deram os franceses a designação de pont-levis (= pontes levadiças), os italianos pianelle, os ingleses chopines e os portugueses e castelhanos CHAPINS (= sapatos acolherados). Ao que parece, as dimensões exageradas das solas destinavam-se a evitar que as vestes longas dos seus portadores não tocassem o solo, impedindo-as de chapinharem nas poças de água e lama formadas nos dias chuva.

As sapatilhas de ballet clássico dispensam cunhas, calços, tacões, saltos ou solas reforçadas para se elevarem suavemente do solo, tal como as sílfides faziam nos mitos celtas e germânicos medievais e se calhar ainda continuam a fazer. Como génios femininos dos ares que eram, possuíam um par de asas para pairarem nas alturas e lá ficarem. As ballerine resolvem essa sensação de leveza etérea através do simples reforço das PONTAS da scarpette da ballo e com a ajuda musculada dos ballerini della compagnia.

Os seres adejantes dos nossos dias usam sapatos de salto alto em forma de AGULHA com capas e plataformas acrescidas. Renderam-se aos maneirismos do momento, ao equilíbrio instável dos malabaris-mos em voga. Elegância procurada nem sempre encontrada. Adorno infalível dum gosto fugidio sem função utilitária definida. Um ser assim porque é assim e está. Tendências sazonais a sonhar eternidade. Modernos na sua pós-modernidade milenar. Ditames da moda. Modis-mos efémeros. Ironia trágica duma comédia falhada.

4 de março de 2020

Escola das Naves do Infante de Sagres

LÁPIDE EM MEMÓRIA DO INFANTE DOM HENRIQUE
Fortaleza de Sagres - Torreão Central
 (1839)
«Monum. consagrado, á eternidade. O grande infante D. Henrique filho de el-rei de Portugal D. João I tendo emprehendido descobrir as regiões até então desconhecidas de Africa occidental e abrir assim caminho para se chegar por meio da circumnavegação africana, até ás partes mais remotas do oriente : fundou n'estes logares, á sua custa, o palácio da sua habitação, a famosa escola de cosmografia o observatorio astronomico e, as officinas de construcção naval conservando promovendo e augmentando tudo isto até ao termo da sua vida com admirável, esforço, e constância, e com grandissima, utilidade do reino das letras da relegião e de todo o genero humano. Faleceu este grande principe depois de ter chegado com suas navegações até o 8.° gr. de latitude septemtr. e de ter descoberto e povoado de ente portugueza muitas ilhas do Atlantico aos XIII. dias de novembro de 1460. D. Maria, II rainha de Portugal e dos Algarves mandou levantar este monumento á memoria do illustre principe seu consanguineo, aos 379 annos depois do seu falecimento, sendo ministro dos negocios, da marinha e ultramar, o visconde de Sá da Bandeira. 1839.»
Corografia ou Memoria economica, estadistica e topografica do reino do Algarve
João Baptista da Silva Lopes
CARTELA - ESFERA ARMILAR - ARMAS REAIS - CARAVELA 
Quem entra com olhar atento no complexo majestoso da Fortaleza de Sagres, depara-se no lado interno da Porta da Praça com uma lápide evocativa brasonada que os folhetos turísticos dizem referir-se ao Infante D. Henrique. Os maus-tratos de tempo e a posição elevada em que foi colocada impedem-nos de ler as informações ali gravadas a duas colunas. Os elementos heráldicos esculpidos remetem-nos ato contínuo para a envolvência lendária que o Promotorium Sacrum congregou ao longo dos séculos e que a moderna historiografia tem tido a tarefa árdua de desmontar e clarificar. A escola de náutica e cartografia que ali teria funcionado na época áurea das descobertas desperta-nos inexoravelmente para o imaginário fantasista.

Observando com um olhar ainda mais atento o conjunto emblemáti-co, notamos pouco restar das insígnias do Senhor de Sagres. O bra-são coroado envia-nos para as armas reais da Casa de Avis e mesmo assim com várias anomalias. São coevas do Infante a serpente alada do timbre e a cruz florenciada da ordem militar que deu nome à dinas-tia, mas anacrónica a posição vertical dos escudetes das quinas e o número de castelos da bordadura. Ao Navegador pertence o lema inscrito na cartela que encima as demais figuras simbólicas, o Talent de bien faire, associado à esfera armilar usada por D. Manuel I como divisa pessoal e a nave a vogar na crista das ondas dum mar encrespado alusiva à alegada escola de cosmografia ali fundada.

A primeira referência à Escola das Naus remonta a 1498, coincidindo com a viagem de Vasco da Gama à Índia. A origem do mito estará li-gado à atividade do Infante de Sagres enquanto Protetor do Estudo Geral de Lisboa, cargo exercido de 1431 a 1460. As aprendizagens teóricas e práticas de náutica estariam inseridas nas matérias de aritmética, geometria e astronomia do plano curricular do Quadrivium ministrado na Faculdade de Artes. O contramito da fundação duma academia de ensino superior dedicada ao mar fundada na ponta mais ocidental do Reino do Algarve cai assim por terra. Uma recriação fantasista bem-servida por um emblema nobiliático identicamente fantasista do Príncipe mais destacado da Ínclita Geração de Avis.

NOTA
No dia do aniversário de nascimento do Navegador, Duque de Viseu e Infante de Sagres, que hoje faria 634 anos...