2 de junho de 2020

Roberto Bolaño e os dissabores do verdadeiro polícia


«¿Y qué fue lo que aprendieron los alumnos de Amalfitano? Aprendieron a recitar en voz alta. Memorizaron los dos o tres poemas que más amaban para recordarlos y recitarlos en los momentos oportunos: funerales, bodas, soledades. Comprendieron que un libro era un laberinto y un desierto. Que lo más importante del mundo era leer y viajar, tal vez la misma cosa, sin detenerse nunca. Que al cabo de las lecturas los escritores salían del alma de las piedras, que era donde vivían después de muertos, y se instalaban en el alma de los lectores como en una prisión mullida, pero que después esa prisión se ensanchaba o explotaba. Que todo sistema de escritura es una traición. Que la poesía verdadera vive entre el abismo y la desdicha y que cerca de su casa pasa el camino real de los actos gratuitos, de la elegancia de los ojos y de la suerte de Marcabrú. Que la principal enseñanza de la literatura era la valentía, una valentía rara, como un pozo de piedra en medio de un paisaje lacustre, una valentía semejante a un torbellino y a un espejo. Que no era más cómodo leer que escribir. Que leyendo se aprendía a dudar y a recordar. Que la memoria era el amor.»
Roberto Bolaño, Los sinsabores del verdadero policía (2011)
O fascínio que certos fabuladores exercem na minha sensibilidade estética é incontornável. Contam-se pelos dedos das mãos, mas, apesar do seu número reduzido, compensam largamente todos os restantes que entretanto vou visitando assiduamente. Roberto Bolaño encontra-se representado nesse número restrito de eleitos. Sempre que me deparo com um texto seu desconhecido de dimensão variável, não resisto a pegar-lhe e trazê-lo comigo para casa. Leitura talvez difícil mas sempre estimulante na aventura da descoberta. A última aquisição trouxe-a da Casa del Libro de Sevilha. Fala-nos d'Os dissabores do verdadeiro polícia (2011), uma proposta descritiva desafiante para começar e desenvolver logo de início uma história empenhada em prometer muitos enigmas de percurso nem sempre simples de decifrar ou de confirmar.

A edição que segui é precedida pelo «Prólogo: Entre el abismo y la desdicha», assinado pelo académico e crítico literário Juan Antonio Masoliver Ródenas, e encerra com uma «Nota editorial» preparada por Carolina López, viúva do novelista. As informações neles veiculados são preciosas para compreender as particularidades específicas dum romance publicado postumamente, o terceiro a gozar deste estatuto, num corpus literário ainda longe de estar esgotado. Uma das revelações mais curiosas prende-se aos hipotéticos significados escondidos no título escolhido. Sem nos fazer desesperar muito pela sua descodificação, todos os mistérios são descartados ab initio pelo próprio autor em declarações pessoais por si lavradas, elucidando-nos que o verdadeiro polícia ali registado se refere ao leitor que busca em vão ordenar uma novela endemoninhada, feita de labirintos e desertos, num contínuo processo de gestação inacabada. A ideia será reiterada a páginas tantas do livro (IV.5) e poderá aplicar-se, grosso modo, a todas as obras de ficção por si gizadas.

A compilação e cotejo de todos os documentos encontrados nos arquivos pessoais do malogrado escritor chileno, tanto os deixados em estado manuscrito como os datilografados numa máquina de escrever elétrica ou processados em suporte digital no computador, serviram de base à reconstituição do produto final dado à estampa pelos herdeiros literários e para deleite dos leitores. Deste exercício de fixação definitiva do texto, surgiram cinco secções de dimensão variável, com as quais as histórias cruzadas dos principais intervenientes se vão fazendo de modo fragmentário e com final irremediavelmente suspenso. Tudo começa com uma simbólica queda do muro de Berlim e termina com a referência aos assassinos de Sonora. Pelo meio ficam diversos apontamentos referentes a Amalfitano e Padilla, a Rosa Amalfitano e a J. M. G. Arcimboldi, protagonistas por excelência deste grande puzzle narrativo e que, para quem conhece minimamente a obra do seu obreiro, já os terá encontrado tanto n'Os detetives selvagens como no 2666. Parece que também num ou noutro conto das Chamadas telefónicas, coletânea a visitar um dia destes quando a oportunidade se apresentar.

As deambulações dum professor universitário chileno de 50 anos, desde Barcelona até Santa Teresa no México, são o pretexto para traçar a linha condutora da intriga. Faz-se acompanhar duma filha de 17 anos e de todos os fantasmas do passado em que a temática da homossexualidade e da sida são recorrentes, num contínuo de episódios dispersos que nem sempre cabem numa sequência única, seguida e coerente. Repartem-se por muitos flashes enunciativos carentes dum princípio e dum final claros. Ficam a pairar na sua incompletude programática. Apontamentos esboçados de destinos diferentes. Lacunas ocasionais ou estratégicas dum estratega das palavras ditas e por dizer. Jogo de gato e rato ou, se preferirmos, de polícia e ladrão, para dar jus ao título que o resume. Questões afloradas sem o remate esperado que uma leitura ingénua exigiria, deixadas em suspenso como acontece com a própria vida, cheia de segredos nunca revelados, que nunca farão parte da nossa experiência e que se encarregará de levar inevitavelmente consigo quando o derradeiro dia chegar.

2 comentários:

  1. Texto muito interessante, assim como o escritor que o Artur aprecia, suspeito que pelo desafio que encerra. O que desconhecia é que as publicações têm sido póstumas. Hei de abalançar-me na sua leitura.

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  2. Uma bela resenha de uma história recheada de histórias fabulosas e oníricas, Prof. O autor era uma fonte inesgotável de imaginação!

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