« Je suis né en bonne santé dans les bras d’une civilisation mourante, et tout au long de mon existence, j’ai eu le sentiment de survivre, sans mérite ni culpa-bilité, quand tant de choses, autour de moi, tombaient en ruine ; comme ces personnages de films qui traversent des rues où tous les murs s’écroulent, et qui sortent pourtant indemnes, en secouant la poussière de leurs habits, tandis que derrière eux la ville entière n’est plus qu’un amoncèlement de gravats. »Amin Maalouf, Le naufrage des civilisations (2019)
Quem quiser ter uma visão minimamente precisa da história recente e remota dos países muçulmanos terá de ler forçosamente o último ensaio de Amin Maalouf, O naufrágio das civilizações (2019), já galardoado com o Prix Aujourd'hui 2019, na qualidade de prémio especial do júri do livro de geopolítica. Para ser mais preciso, até se aconselharia a leitura integral da sua obra, tanto a ensaística como a ficcionada. É que o escritor e jornalista libanês de língua francesa do-mina com perfeita mestria quer a técnica de contar histórias assentes em factos acontecidos quer a de narrar eventos históricos com todo o rigor que o seu ponto de vista lhe impõe, mas fazendo-o como se dum verdadeiro romance se tratasse, prendendo o leitor à palavra escrita, clara e fluida como água cristalina, e à vontade determinada de prosseguir a viagem ininterruptamente sem parar.
A carreira fulgurante do antigo jornalista do semanário An Nahar, de Beirute, chefe de redação e editoralista da revista Jeune Afrique, de Paris, atual membro da Académie française, inicia-se com As Cruzadas vistas pelos Árabes (1983) e Leão, o Africano (1986). Mais precisamente uma reflexão alternativa oriental à interpretação ocidental da ocupação da Terra Santa e uma biografia romanceada de Hasan al-Wazzan, famoso geógrafo e diplomata quinhentista andaluz convertido ao catolicismo no tempo de Leão X. Com estes títulos inaugurais e com todas a restante obra entretanto publicada, o seu autor seria catapultado a breve trecho para a ribalta das letras, traduzido para uma cinquentena de idiomas e premiado com as mais prestigiadas distinções nacionais e internacionais.
As propostas de diálogo fraterno entre o mundo cristão e islâmico são constantes neste pensador e criador asiático exilado em território europeu. Tarefa inglória que nunca o impediu de prosseguir o seu desiderato de conquistar uma harmonia pacífica entre os povos. Para tal recorre com alguma frequência às suas raízes ancestrais. O espírito crítico com que analisa os problemas que nos nossos dias fustigam a humanidade ganha uma tonalidade de biografia centrada em eventos por si testemunhados ou na saga experienciada pela sua vasta família, dispersa um pouco por toda a parte e por todos os continentes, como revela pormenorizadamente em Origens (2004). O problema da pertença coletiva, a forma como é encarado pelas diversas comunidades culturais, religiosas ou nacionais, geradoras de conflitos violentos centrados nas diferentes línguas, crenças ou etnias, é questionado de modo incisivo nas Identidades assassinas (1998). Na década seguinte, volta à carga com uma reflexão sobre o desconserto generalizado que se vive a uma escala global no início dum novo século e milénio. Intitula-o Um mundo sem regras (2009), caraterizado no plano intelectual, climático, económico e financeiro, com repercussões perturbadoras a nível do nosso sistema de valores, colocando a humanidade no limiar dum desregramento moral generalizado a que urge pôr termo.
A dialética seguida no corpus supra referido é retomada com as naturais atualizações geopolícas no derradeiro título publicado. Fá-lo como um balanço atento a mais um decénio de devir histórico. As suas viagens pelo mundo, as suas vivências pessoais, as suas raízes multiculturais, levam-no a tecer uma série de considerandos sobre os perigos eminentes dum verdadeiro naufrágio das civilizações, a do Levante islâmico agonizante e a do Ponente cristão em estado crítico. Reparte a análise por quatro secções complementares, devidamente enquadradas por um prólogo e um epílogo convencionais. Começa com uma resenha às vicissitudes contextuais do seu país natal, que converteram lentamente num paraíso em chamas. Refere depois as rivalidades imperantes no universo árabe-muçulmano, que levaram os povos nativos à perdição. Muda de diapasão e centra-se em 1979, o ano da grande reversão, aquele em que se assistiu a duas revoluções conservadoras, o advento de aiatola Khomeini no Irão e de Margaret Thacher no Reino Unido, facto que terá transformado todas as sociedades humanas. Conclui com o panorama sombrio dum mundo em decomposição, deixando um aviso à navegação sobre os modos possíveis de o evitar. Sigamos nós todos esse alerta e exerçamos empenhadamente o nosso papel de mediadores individuais interventivos para a construção duma consciência coletiva efetiva. Só assim o grande paquete planetário que nos transporta possa continuar a navegar sem correr o risco de se afundar.
Obrigada por mais esta interessante recensão, Prof., que nos lembra que Maalouf é um mestre a contar histórias dentro da História mundial, com uma estilística criativa notável. Li "O rochedo de Tanios" e "Leão, o Africano", que muito me empolgou, e vou agora ler "As cruzadas vistas pelos árabes", ficando com mais esta sugestão para continuar a aprender com Maalouf. É uma pena os humanos ouvirem mas serem capazes de aprenderem a escutar os mais avisados...
ResponderEliminarMuitíssimo bom e interessante, Artur. Obrigada.
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