29 de junho de 2020

José Saramago: o último caderno de Lanzarote ou o diário do ano do Nobel

«Duas razões me levaram, mais ou menos conscientemente, a escrever um diário: em primeiro lugar, a circunstância de ter saído do meu país para viver nesta ilha distante; em segundo lugar, a necessidade, que nunca experimentara antes, de “reter” o tempo, de o obrigar, por assim dizer, a deixar o maior número possível de sinais da sua passagem. Cadernos de Lanzarote é como uma longa carta enviada àqueles que ficaram no outro lado, mas é também um modo (vão, inútil, quem sabe mesmo se desesperado...) de fingir prolongar a vida por uma obstinada “escrituração” dos dias. Os Cadernos não são um laboratório, embora não faltem neles reflexões sobre o “fazer” literário; não são um registo dos casos do mundo, embora abundem os comentários sobre a atualidade; não são uma coleção de dados para uma futura biografia, embora vão dizendo o que faço e o que penso. Como todo o diário (como toda a escrita), os Cadernos de Lanzarote são um exercício narcisista, mas, contra o que geralmente se crê, Narciso nem sempre gosta do que vê no espelho em que se contempla...»
José Saramago, Último caderno de Lanzarote (2018)
No momento em que se cumpre uma década sobre a morte de José Saramago, procedi à leitura do Último caderno de Lanzarote (2018), deixado inédito pelo autor no disco rígido do seu computador e publicado postumamente vinte anos após a sua redação, aquele 1998 em que a Academia Sueca lhe conferiu o mais cobiçado prémio literário a que um criador da grande aldeia global pode aspirar. O «Diário do ano do Nobel», como também é designado, é precisamente o primeiro título que leio duma série constituída por seis tomos, composta por um dos meus escritores de eleição, sobretudo na sua faceta de romancista. A vontade de partir à descoberta dos restantes cinco que o antecederam instalou-se no final das quase três centenas de páginas que lhe dão corpo. Uma forma suplementar para me manter em contacto com um dos vultos maiores das letras portuguesas.

Graças às caraterísticas especiais ligadas à sua divulgação pública em livro, o Sexto Caderno abre com um fragmento do próprio José Saramago, extraído do epílogo duma edição espanhola dos Cader-nos de Lanzarote - Diário II, datado de 12 de outubro de 2001. Nesse excerto, é fornecida uma explicação sobre o facto de não ter sido dado à luz até então, apesar de se referir ao biénio de 1998/99, destacando as muitas obrigações e compromissos urgentes que a consagração literária internacional lhe dera nesse período. Os atrasos seguintes são clarificados por Pilar del Río em «O limbo e os discos rígidos do Tempo», implícitos, desde logo, no próprio título da nota editorial e associados às circunstâncias extraordinárias aludidas. A secção introdutória conta ainda com um pequeno apon-tamento de Eduardo Lourenço, em que este compara o «autor do Memorial» a Chateaubriand, no que à «ultima verba» se refere, i.e., as póstumas Mémoires d'outre-tombe.

O diário-caderno propriamente dito inicia-se no primeiro dia de 1998 e termina a 26 de setembro do ano seguinte. Entre uma entrada e a outra, contamos 212 mais de dimensão variada, que poderão oscilar duma palavra, linha ou parágrafo a um conjunto considerável de páginas que chega a aproximar-se das duas dezenas. Os assuntos abordados obedecem ao mesmo princípio da diversidade, podendo resumir-se a meros lembretes e anotações a desenvolver noutra altura, ao registo de pequenos-grandes eventos do dia-a-dia ou à transcrição dum ou doutro texto já publicado anteriormente e, ainda, dum discurso-conferência apresentado num qualquer encontro literário realizado nas mais díspares partes do mundo. Em qualquer dos casos ficamos a conhecer melhor a personalidade real do criador de universos alternativos centrados no imaginário puro. 

Em tempos que vão, descobri ocasionalmente José Saramago através da capa dum dos seus romances mais conhecidos. A história não se fica por aqui, mas já a contei com algum pormenor noutro local e dispenso-me assim de a reproduzir. Nos dias de hoje dificilmente voltaria a repetir esse impulso momentâneo. Não pela infantilidade cometida de escolher um livro pelo seu aspeto exterior, mas sobretudo pela diferença abissal de padrões estéticos seguidos pelas primitivas publicações da Editorial Caminho e as atuais da Porto Editora. Gostos à parte, fica a qualidade intrínseca da obra produzida, que é o que de facto conta no universo literário. É nesse horizonte de eventos, constituído por romances, contos, poemas, crónicas, ensaios, diários e dramas, que se encontram ainda alguns títulos à espera duma primeira leitura. Mais tarde ou mais cedo, terei de colmatar essa lacuna e encetar uma viagem de exploração por essa área desconhecida do mais internacional dos escritores portugueses. Creio que vou atirar-me à sua faceta teatral que conheço pela rama e depois logo direi de minha justiça. Pela experiência que tenho da sua escrita, estou certo que não ficarei desapontado no final do percurso.         

3 comentários:

  1. De facto há capas+editoras que nos transmitem confiança ou desconfiança naquela hora de escolher um livro, a Caminho é sinónimo de qualidade, pudemos é não estar interessados no escritor.
    As capas escolhidas pela Porto Editora, comparativamente não são as melhores, é a minha opinião.
    Qto ao escritor, continuo a descobri-lo ainda com uma pedra no sapato.
    O artigo que o Artur nos traz é um convite irrecusável. Obrigada.

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  2. O último volume dos Cadernos que ainda não li... Comecei a ler Saramago precisamente pelo Memorial do Convento, oferta de uma explicanda brilhante, com a tal capa que me seduziu logo. Emprestei-o a uma boa amiga e nunca mais regressou, com muita mágoa porque a dedicatória era um complemento ao romance... Há que regressar aos velhos títulos, que tantas horas de prazer me ofereceram!

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  3. Teresa Salvado de Sousa7 de julho de 2020 às 19:00

    Dizes que foi uma infantilidade escolher o livro pelo apelo da capa. Será então uma infantilidade que muitos teremos cometido. A mim há capas que me afastam. Explicativas, usando figuras e cores delicodoces, fazem a interpretação que a mim, leitora, me cabe e geram representações do universo do livro que, se calhar, leio erradamente. Se o autor é responsável pela obra, se escolhe o título, também, em certa medida, enquanto vivo, aceita as contingências da edição e, logo, as capas. E isso pode afastar-me, é um obstáculo que tenho de ultrapassar. Também não gosto de alguns grafismos ; não gosto, por exemplo, das capas das atuais edições de Saramago, com os títulos manuscritos. Complexidades do mundo editorial e complexidades da leitora...

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