29 de agosto de 2020

Lídia Jorge, uma foto cinéfila num campo forrado de margaridas

 

 Margaridas do campo 


O meu tio retirou a máquina fotográfica do seu estojo, fez experiências contra o sol, fechou os olhos, tapou os olhos com a pala do boné, an-dou às arrecuas, para os lados, correu, ajoelhou, e depois, final-mente, mandou-me que o olhasse.

«Mas antes colhe um ramo de margaridas!»

Colhi-as, fiz um ramo, olhei para ele contra o sol, de lado, sentada no meio das flores, de perto, de mais longe, com e sem chapéu, e quando cheia de soberba por me sentir rainha, olhei de três quartos, com a boca unida, cheia de silêncio, o meu tio gritou.

«Isso, isso, não te mexas, Greta Garbo!»

Lídia Jorge, A Instrumentalina (2007)
Obs.:
Um ramo de margaridas do campo para Lídia Jorge, que acaba de ganhar o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas 2020.

27 de agosto de 2020

Didier van Cauwelaert, uma educação de fada trazida para a vida real

« Je suis tombé amoureux de deux personnes en même temps, un vendredi matin, dans un bus d´Air France. Elle est blonde, en tailleur noir, l´air à la fois concentré et absent. Il est tout petit, avec de grosses lunettes rondes à monture jaune et un chasseur bombardier Mig 29 de chez Mestro dans la main droite. De son autre main il s´accroche à la jupe de sa mère, qui descend de quelques millimètres à chaque secousse. Inconsciente du spectacle qu´elle offre, elle laisse aller son regard au-dessus des têtes d´hommes d´affaires qui suivent machinalement la progression du strip-tease commencé par son petit garçon. »
Didier van Cauwelaert, L'Éducation d'une fée (2000)

Veio ter comigo de livre e espontânea vontade, em surdina, em edição de bolso, sem que eu o chamasse ou suspeitasse sequer da sua existência. Estou a referir-me a um dos mais premiados autores franceses de origem belga, Didier van Cauwelaert, e a um dos muitos romances que já deu à estampa, A educação duma fada (2000). O acaso tem destas surpresas que me enriqueceram parte destas férias de verão. De mão em mão veio parar à minha posse como proposta de leitura agradável. E bom ter uma família francófona que gosta de caminhar pelo interior dos livros e ouvi-los falar no idioma original. Assim lá vamos enriquecendo as nossas bibliotecas pessoais a contento de todos.

Emotiva, surpreendente, paradoxal, inspirada e pedagógico à sua maneira, este conto de fadas para adultos vivido por uma criança de oito anos é-nos transmitido pela junção acertada de dois relatos autobiográficos com final feliz, como convém ao género convocado para partilhar a história, apesar da voz masculina dos capítulos ímpares não se casar com a voz feminina dos capítulos pares. Muito pelo contrário. Ela é só a tal fada de carne osso trazida dos livros infantis para a vida real do dia-a-dia contemporâneo. Esse ser intermediário que ajuda a traçar o destino dos seus protegidos logo após o nascimento e os acompanha pela vida fora. Em termos da tradição oral corresponde à madrinha de batismo da fé cristã e opõe-se, pela mesma ordem de ideias, às bruxas e às madrastas sempre pérfidas do imaginário popular.

A contracapa do exemplar por onde viajei nestes dias quentes de agosto e com o mar a perder de vista convida-nos a mergulhar de rompante na trama discursiva, através da formulação de três perguntas sem resposta, retomadas aqui por palavras minhas, visto a indiscrição do despertar dos mistérios ter sido cometido com anterioridade e consentimento do criador externo da fábula. Saber qual o procedimento a seguir, quando alguém decide deixar-nos porque nos ama. Saber como salvar o casamento dos pais quando se é ainda de tenra idade. Saber de que modo uma jovem sem rumo definido na vida se transforma numa fada, só porque uma mente infantil inocente assim decidiu acreditar. As questões só serão resolvidas no interior das narrativas cruzadas que constituem a urdidura do texto.

A motivação para penetrar nos segredos guardados nas páginas do livro é aliás implementada logo na capa desenhada por Bruno Mallart. Todos as imagens alusivas que vamos vendo e tentando conjugar com o título de sonoridade singular vão-se formando no nosso espírito, como se duma varinha de condão se tratasse. Os resultados obtidos estão longe de coincidir por completo com o rumo da intriga original mas ajudam-nos a situar parte do cenário em que a ação se desenvolve. O carrinho de compras, os códigos de barras, a máquina registadora com braços pejados de pulseiras e pernas a correr numa passadeira de ginásio remetem-nos para um estabelecimento de venda ao público e para a funcionária de serviço à cobrança das compras, uma presumível admiradora de Gide e amante das escritas manuscritas em folhas de papel A4. Trata-se da tal fada na sua dupla função de narradora dum diário pessoal e caixa duma grande superfície citadina. Mais difícil será decifrar a função desempenhada pela bandeira triestrelada da Síria, ao invés da tricolor francesa, que ato contínuo aliamos ao espaço privilegiado onde tudo eventualmente se passa. A junção de registos verbais e iconográficos permite-nos identificar os restantes atores em palco. O cliente apressado do supermercado e o rapaz que brinca com o avião de papel ao segundo efabulador e ao terceiro interveniente referido. Quanto à ave representada de perfil e semitapada pelo edifício cilíndrico, podemos avançar estar associada a uma ornintóloga e quarto elemento de protagonistas envolvidos no enredo.

As dicas estão dadas. Entre a capa e a contracapa há um mundo de fantasias a descobrir. A do adulto que fabricava jogos de brincar porque lhe haviam roubado a infância e a da criança que traz para o mundo real o mundo imaginado dos contos de fadas. Agora é só por os pés-a-caminho e as mãos-à-obra. As leituras fazem-se lendo todas as palavras que as histórias nos contam. As infantis e todas as demais, que em termos literários todas elas têm a mesma importância e desempenham o mesmo papel intemporal de instruir e divertir miúdos e graúdos.

24 de agosto de 2020

Henry VIII, the Knight of the Loyal Heart

THOMAS WRIOTHESLEY
Henry VIII jousting in front of Catherine of Aragon in 1511

    Le Chevalier du Cœur Loyal    

«Não descobrirás a nudez da mulher do teu irmão: é a nudez do teu próprio irmão [...] Se um homem tomar a mulher do irmão, isso é uma impureza; porque descobriu a nudez do seu irmão, morrerão sem filhos.»
LEVÍTICO: 18, 16; 20, 21
Henrique VIII (1491-1547) gostava de colecionar de tudo um pouco: títulos, estilos, emblemas, brasões, divisas, amantes e mulheres, as suas e as alheias, católicas e luteranas, anglicanas e protestantes, casadas e solteiras. Só não conseguiu ter uma ranchada de filhos varões como desejava mas bem ensaiou. Sobreviveu-lhe um mas foi sol de pouca dura. A Eduardo VI, sucederam-lhe uma prima e duas filhas: Jane Grey, a Rainha dos Nove Dias; Maria I, a Sanguinária; e Isabel I, a Gloriana. Ironias dum destino indesejado com contornos trágicos ou dramáticos ou simplesmente tragicómicos.

Henrique Oitavo, pela Graça de Deus, Rei da Inglaterra, França e Ir-landa, Defensor da e Chefe Supremo na Terra das Igrejas da In-glaterra e Irlanda casou-se seis vezes mas só enviuvou legalmente uma. Anulou quatro casamentos e não sobreviveu à última. Para tal recorreu a uma separação litigiosa por questões religiosas e outra de mútuo acordo por antipatia sensual recíproca, mandou degolar duas delas na Torre de Londres por aludidos atos de traição, adultério e incesto, mas já não teve tempo de eliminar a última por uma qualquer desculpa esfarrapada arranjada à última hora.

O Oitavo Henrique de nome na lista de monarcas britânicos usou como insígnias pessoais, desde os seus tempos de mero Duque de Iorque e de Príncipe de Gales, as três Flores-de-Lis gaulesas e os três Leopardos Normandos. Depois, foi-lhe acrescentando outros atributos reais à medida que foi assumindo as rédeas do poder: a Rosa e a Portcullis Coroadas dos Tudor, usadas desde o tempo do fundador da dinastia, ladeadas pelo Galgo de Richmond e o Dragão Vermelho de Cadwaladr, símbolos heráldicos clássicos da honra e legitimidade da casa reinante e da tradição lendária arturiana.

Henry VIII, the king, para além dos obrigatórios Dieu et mon Droit e do Honi soit qui mal y pense, motes retirados das ordens do Tosão de Ouro e da Jarreteira, e do Altera Securitas associado às grades da Porta Levadiça dos Beaufort, adotou ainda um emblema bordado a ouro nas roupas de aparato e armas de lide que levava para as justas de cavalaria, subordinado ao lema Cœur Loyal (= Coração Leal), o que dado o seu historial matrimonial não deixa de ser irónico, embora se diga que esta divisa se dedicasse em exclusivo a Catarina de Aragão, com quem viveu quase um quarto de século.

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Os escrúpulos sentidos de Henrique VIII por ter casado com a viúva do irmão Artur de Gales, não se manifestaram um só momento ao casar-se com Ana Bolena, depois de ter descoberto a nudez da irmã Maria Bolena. É que os preceitos do Levítico se aplicavam de modo estrito aos homens. Mais tolerante terá sido Dom Pedro II, ao desposar Dona Maria Francisca Isabel de Saboia, a viúva do irmão Dom Afonso VI. Neste ponto de incestos reais, parece que os Bragan-ças portugueses tinham uma leitura bíblica bem mais terra-a-terra do que os Tudors ingleses seus antepassados remotos.    
 
The procession with Henry at its heart

20 de agosto de 2020

Meio copo de água em contracorrente

Jean-Baptiste Siméon Chardin
Panier de prunes, bouteille, verre à demi plein d'éau et deux concombres (c. 1730)
[Frick Collection - New York]
Água corrente não mata gente
Provérbio popular

          SUPLÍCIO DE TÂNTALO        

Sou adepto militante do contra. Prefiro ter um copo 1/2 vazio na minha mão, do que ter um copo 1/2 cheio à minha frente. Tê-lo completamente cheio é que não serve de nada, a não ser que me prepare para o despejar até ao fim. Se preferível de água, a uma temperatura agradável. Nem 1/2 quente, nem 1/2 fria. Bebível. A obrigatoriedade vital de ingerir dois litros de H2O por dia impõe-se, essa mistura de dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio. A necessidade absoluta de hidratação através desse líquido sem cor, sem cheiro e sem sabor, essencial para os processos químicos da vida assim o exige de modo categórico.

Fui sempre avesso ao consumo de líquidos no seu estado natural. Preferi sempre substituí-los por de modo indireto através da fruta, dos legumes, das saladas, dos vegetais e até das sopas, frias ou quentes, cruas ou cozinhadas. Ser obrigado nos dias de hoje a consumir 1/2 dúzia de copos diários de água tornou-se num verdadeiro suplício de Tântalo tomado no sentido inverso. Por isso, mudei a teoria da resiliência do copo 1/2 cheio ser apanágio de positividade pela nova versão do copo 1/2 vazio perder a carga de negatividade que lhe é comummente atribuída. Mudam-se as dietas, mudam-se os princípios que as regem.     

O espírito conservador da 1/2 idade  seja ela qual for, a que se atinge quando se deixa de dizer mal dos pais e se começa a dizer mal dos filhos , não admite nem as 1/2(s) palavras, nem as 1/2(s) tintas. A história dos copos 1/2 cheios o 1/2 vazios deixam de fazer qualquer tipo de significado. As 1/2(s) doses deixam de ser sentidas como positivas/negativos. Até porque um copo está sempre cheio de qualquer coisa, seja ela líquida, sólida ou gasosa, não havendo lugar para qualquer tipo de vazio. Assim, e por questões de sobrevivência, o melhor é mesmo esvaziar um copo inteiro de água para o voltar a encher uma vez e muitas mais.

17 de agosto de 2020

El oficio de atrapar historias suspendidas en el aire...


Desempolvar recuerdos y trenzar destinos
Desperté de madrugada. Era miércoles suave y algo lluvioso en nada diferente de otros de mi vida, pero éste lo atesoro como un día único reservado sólo para mí. Desde que la maestra Inés me enseñó el alfabeto, escribía casi todas las noches, pero sentí que ésta era una ocasión diferente, algo que podría cambiar mi rumbo. Preparé un café negro y me instalé ante la máquina, tomé una hoja de papel limpia y blanca, como una sábana recién planchada para hacer el amor y la introduje en el rodillo. Entonces sentí algo extraño, como una brisa alegre por los huesos, por los caminos de las venas bajo la piel. Creí que esa página me esperaba desde hacía veintitantos años, que yo había vivido sólo para ese instante, y quise que a partir de ese momento mi único oficio fuera atrapar las historias suspendidas en el aire más delgado para hacerlas mías. Escribí mi nombre y en seguida las palabras acudieron sin esfuerzo, una cosa enlazada con otra y otra más. Los personajes se desprendieron de las sombras donde habían permanecido ocultos por años y aparecieron a la luz de ese miércoles, cada uno con su rostro, su voz, sus pasiones y obsesiones. Se ordenaron los relatos guardados en la memoria genética desde antes de mi nacimiento y muchos otros que había registrado por años en mis cuadernos. Comencé a recordar hechos muy lejanos, recuperé las anécdotas de mi madre cuando viviamos entre los idiotas los cancerosos y los embalsa-mados del Profesor Jones; aparecieron un indio mordido de víbora y un tirano con las manos devoradas por la lepra; rescaté a una solterona que perdió el cuero cabelludo como si se lo hubiera arrancado una máquina bobinadora, un dignatario en su sillón de felpa obispal, un árabe de corazón generoso y tantos otros hombres y mujeres cuyas vidas estaban a mi alcance para disponer de ellas según mi propia y soberana voluntad. Poco a poco el pasado se transformaba en presente y me adueñaba también del futuro, los muertos cobraban vida con ilusión de eternidad, se reunían los dispersos y todo aquello esfumado por el olvido adquiría contornos precisos.

 [...] 

Sobre la mesa crecía un cerro de páginas salpicadas de anotaciones, correcciones, jeroglíficos y manchas de café, pero recién empezaba a desempolvar recuerdos y trenzar destinos, no sabía hacia dónde iba ni cual sería el desenlace, si es que lo había. Sospechaba que el final llegaría sólo con mi propia muerte y me atrajo la idea de ser yo también uno más de la historia y tener poder de determinar mi fin o inventarme una vida. El argumento se complicaba; los personajes se tornaban más y más rebeldes. Trabajaba —si trabajo se puede llamar aquella fiesta— muchas horas al día, desde el amanecer hasta la noche. Dejé de ocuparme de mí misma, comía cuando Mimí me alimentaba y me iba a dormir porque ella me conducía a la cama, en sueños seguía sumida en ese universo recién nacido, de la mano con mis personajes, no fueran a desdibujarse sus delicados trazos y volver a la nebulosa de los cuentos que quedaban sin contar.

Isabel Allende, Eva Luna (1991)

10 de agosto de 2020

Os olhares de São Jerónimo olhados por Albrecht Dürer


ALBRECHT DÜRER
«São Jerónimo» (1521) 

Durante anos a fio, de segunda a sextaolhámo-nos olhos nos olhos sem nos intimidarmos com o olhar fixo que nos lançávamos mutuamente. Todas as manhãs, ao abrir o computador de serviço no meu gabinete pessoal, deparava-me com o seu olhar pensativo projetado no ambiente de trabalho do PC. Os livros expostos na sua mesa confrontavam com o olhar que lhes é próprio a resma de livros e papéis lançados a esmo na minha bancada de escritas e leituras. Nunca cheguei a saber aquilo que na sua linguagem de palavras tecidas a tinta se diriam uns aos outros. Posso conjeturar com alguma certeza trocarem pontos de vista olhados à distância de meio milénio sobre as reflexões de São Jerónimo (340-420) a propósito da condição humana dos seres viventes condenados à morte. O olhar vazio da caveira que ilustra o vanitas vanitatum et omnia vanitas, i.e., «a vaidade das vaidades e tudo é vaidade», a traçar o destino inexorável sobre o nada das coisas deste mundo. O Doutor da Igreja e patrono dos humanistas cristãos é olhado de revés pelo olhar dum Cristo crucificado, olhar de observador atento às meditações solitárias do velho sábio da Dalmácia romana.

Olhei para os olhares do São Jerónimo de Albrecht Dürer com olhos de ver no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, em pelo menos duas ocasiões especiais: durante a Exposição Provisória de Pintura Estrangeira (1975) e da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura do Conselho da Europa (1983). Voltei a olhar os olhares do grande estudioso das sagradas escrituras, tradutor da Bíblia e tratadistas de textos doutrinais, no Pavilhão de Portugal da EXPO 92 de Sevilha. Em cada um dos encontros, detive-me a contemplar o rosto enrugado indagador e as barbas brancas onduladas daquele ancião de 93 anos que o grande pintor alemão do Renascimento escolhera para modelo dum santo venerável que cumprira uma dura penitência de quatro anos no deserto por culpas que ele divisaria. O eixo diagonal que une o crucifixo à pena com que registaria as suas reflexões teológicas, sugeridas pelas duas mãos que apontam a outras tantas cabeças, ato simbólico da vida que pensa e da morte que faz pensar, plasmado no olhar pintado a óleo sobre madeira de carvalho e nos fixa em permanência nas Janelas Verdes para as viagens dos olhares intemporais que com ele se vão cruzando.

4 de agosto de 2020

Lucette Valensi, Fábulas sebastianistas da memória da batalha dos três reis

« Au lendemain du 4 août, la bataille appartient déjà au passé, mais pas encore pour les Portugais restés au pays. Plus qu'au-jourd'hui, reporters de la presse écrite, cameramen de la té-lévision et détenteurs de téléphone mobile assistent en direct aux événements qu'ils nous présentent, les " nouvelles " étai-ent alors des relations, des récits différés d'actions révolues, Qu'apprit-on, au Portugal, de la bataille du 4 août ? »
                                               Lucette Valensi, Fables de la mémoire: La glorieuse bataille des trois rois (1992, 2009)
Encontrei na pequena livraria do Museu Judaico de Belmonte um livro que procurava em vão uma eternidade, alegadamente por estar muito esgotado, apesar de Lucette Valensi ter visto as suas Fables de la mémoire: La glorieuse bataille des trois rois (1992) publicadas em duas edições francesas e outras tantas portuguesas. Fiquei-me com o único exemplar disponível no local, a versão mais recente da obra, preparada pelas Éditions Chadeigne  Librairie Portugaise, com o apoio do Centre Culturel Calouste Gulbenkian de Paris. Comprei-o há dois anos mas só agora lhe peguei e tenho vindo a seguir os relatos da malfadada incursão bélica do Rei de Portugal no Reino dos Algarves de além-Mar em África, bem como de todos os acidentes extraordinários, associados ao evento. Nela não faltam visões, vozes, aparições, revelações, vaticínios, sinais, alucinações, prodígios, presságios, histórias, lendas, fábulas, milagres, trovas, construções mitológicas e tudo o mais que a memória dos povos foi gizando ao longo dos séculos sobre o maior desastre da História portuguesa, a batalha de Alcácer-Quibir, travada a 4 de agosto de 1578, aquela em que morreram três soberanos: Dom Sebastião, rei de Portugal; Abd al-Mâlik, sultão legítimo de Marrocos; e Moulay Muhamed, o sultão destronado e aliado do exército invasor lusitano. No final da contenda, será  al-Mansûr, o novo senhor do Sultanato Saadiano, a receber de imediato os louros da vitória e, de certo modo, à distância de dois anos, Filipe II de Castela, ao tornar-se Filipe I de Portugal, depois de ter herdado, comprado ou conquistado para os Áustrias a Coroa dos Avis.

Cruzei-me com a Matéria Sebástica  muitas e variadas vezes durante o meu percurso académico, enquanto discente/docente de Línguas, Literaturas e Culturas. Ainda me lembro da popularidade alcançada pelo Quarteto 1111 com A lenda de el-rei Dom Sebastião (1968), uma balada feita ao gosto saudosista da época a recontar de modo cantado os infortúnios d'O Desejado. Depois há ainda os ensaios políticos, os filmes alusivos, os documentários televisivos, as teses académicas, as peças de teatro, a ópera, as poesias, os artigos de revistas, os livros. Destaco um único romance, as Dix mille guitares, composto em 2010 por Catherine Clément, que recenseei para o Pátio de Letras em 2011, repus aqui neste espaço em 2017, reflexão reduzida duma comunicação mais extensa apresentada em 2011 na Uniwersytet Łódzki (Polónia), e publicada em 2014 pela Acta Universitatis Lodziensis, parcialmente disponível na Net. Acrescento a terminar uma conferência que proferi em 2017, na Association Culturelle Portugaise Alma Lusa sediada em Rennes (França), onde a temática foi tratada com todos os pormenores disponíveis. Em ambos as ocasiões, senti vontade de consultar o estudo da professora franco-tunisina de origem judaica, Lucette Valensi, que, como referi, só viria a encontrar numa pequena vila histórica da Beira Baixa em 2018, obra que não consegui vislumbrar nas mais reputadas livrarias da capital da Bretanha.

Nas cerca de quatro centenas de páginas do texto, a investigadora procede à resenha exaustiva de todas as relações investigadas e referentes ao tema d'O Encoberto, as anónimas e as assinadas, as manuscritas e as impressas, as portuguesas e as marroquinas. Menciona também as perdidas, os murmúrios, gemidos e silêncios, através dos testemunhos documentados pelas memórias escritas e orais, individuais e coletivas, imediatas e longínquas, sobreviventes à voragem do tempo. Desenvolve a gloriosa Batalha dos Três Reis, recorrendo às lembranças duma grande carnificina entre cristãos, judeus e muçulmanos. Através dessas Fábulas da Memória, as tais que começaram a ser contadas logo após a contenda e têm vindo a repetir-se mais de quatro centúrias, encontram-se distribuídas por dez capítulos, enquadradas por uma Introdução e uma Conclusão, secções canónicas obrigatórias neste tipo de trabalho, a que não falta, também, um curto Prefácio e uma extensa Bibliografia, para além dum muito completo aparato crítico de Notas, registadas a duas colunas. As diversas versões de vitória/derrota do combate e das suas repercussões na formação do Sebastianismo, entendido como o mais enraizado mito messiânico ou do homem providencial de toda a história cultural portuguesa, porque assente no regresso dum rei salvador do país.

Em 1986 ou 87  se a memória fragmentária dos eventos me não falha , andei pelos percursos bélicos marroquinos trilhados pelo derradeiro Cavaleiro-Cruzado europeu de feição medieval. Efetuei-o integrado numa viagem turística, sem fins peregrinos, organizada por um pequeno grupo de amigos. Entre Ceuta e Fez, fizemos escala em Tânger, Tetuão, Arzila e Larache. Tudo lugares paradigmáticos da Era Imperial portuguesa, que o guia oficial foi referindo com meias-palavras de circunstância e usando a técnica do politicamente correto. Passámos ao largo de Ksar-el-Kebir sem parar, depois de ter atravessado o Wâd al-Makhâzir, o local da batalha, sem ter avistado a ponte arruinada sobre o rio Oued al-Makhâzir, onde as forças invasoras cristãs foram dizimadas e o aliado rebelde muçulmano se afogou. O aqui e o agora também em que o Mito da Cruzada se converteu no Contramito da Decadência, aquele em que o jovem rei de 24 anos terá perdido a vida ou simplesmente desaparecido, para reaparecer, à boa maneira arturiana, numa manhã de nevoeiro, vindo duma ilha encantada, no seu cavalo real, para reassumir o Trono entretanto ocupado a título pessoal pelo tio materno, Filipe I/II de Habsburgo. E assim a história se fez lenda, e assim El-Rei Dom Sebastião passou de anti-herói derrotado pelo Islão nos labirintos da contenda em herói romanesco e prometido conquistador dum Quinto Império Global para a Cristandade. A crença na vinda dum salvador nacional frutificou e espalhou-se por todo o Império, com especial incidência no Brasil, e chegou até aos nossos dias vestido com as roupagens atuais. Continuamos à espera ansiosa duma vacina milagrosa que nos liberte do novo coronavírus, o Covid-19, que nos devolva a normalidade utópica que usufruíamos antes da pandemia. E como a esperança é a última a morrer, façamos fé que esta recente versão do Sebastianismo tenha pernas para andar e nos venha visitar o mais depressa possível. 

Lucette Valensi, Fábulas da Memória (1996, 2008)