10 de agosto de 2020

Os olhares de São Jerónimo olhados por Albrecht Dürer


ALBRECHT DÜRER
«São Jerónimo» (1521) 

Durante anos a fio, de segunda a sextaolhámo-nos olhos nos olhos sem nos intimidarmos com o olhar fixo que nos lançávamos mutuamente. Todas as manhãs, ao abrir o computador de serviço no meu gabinete pessoal, deparava-me com o seu olhar pensativo projetado no ambiente de trabalho do PC. Os livros expostos na sua mesa confrontavam com o olhar que lhes é próprio a resma de livros e papéis lançados a esmo na minha bancada de escritas e leituras. Nunca cheguei a saber aquilo que na sua linguagem de palavras tecidas a tinta se diriam uns aos outros. Posso conjeturar com alguma certeza trocarem pontos de vista olhados à distância de meio milénio sobre as reflexões de São Jerónimo (340-420) a propósito da condição humana dos seres viventes condenados à morte. O olhar vazio da caveira que ilustra o vanitas vanitatum et omnia vanitas, i.e., «a vaidade das vaidades e tudo é vaidade», a traçar o destino inexorável sobre o nada das coisas deste mundo. O Doutor da Igreja e patrono dos humanistas cristãos é olhado de revés pelo olhar dum Cristo crucificado, olhar de observador atento às meditações solitárias do velho sábio da Dalmácia romana.

Olhei para os olhares do São Jerónimo de Albrecht Dürer com olhos de ver no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, em pelo menos duas ocasiões especiais: durante a Exposição Provisória de Pintura Estrangeira (1975) e da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura do Conselho da Europa (1983). Voltei a olhar os olhares do grande estudioso das sagradas escrituras, tradutor da Bíblia e tratadistas de textos doutrinais, no Pavilhão de Portugal da EXPO 92 de Sevilha. Em cada um dos encontros, detive-me a contemplar o rosto enrugado indagador e as barbas brancas onduladas daquele ancião de 93 anos que o grande pintor alemão do Renascimento escolhera para modelo dum santo venerável que cumprira uma dura penitência de quatro anos no deserto por culpas que ele divisaria. O eixo diagonal que une o crucifixo à pena com que registaria as suas reflexões teológicas, sugeridas pelas duas mãos que apontam a outras tantas cabeças, ato simbólico da vida que pensa e da morte que faz pensar, plasmado no olhar pintado a óleo sobre madeira de carvalho e nos fixa em permanência nas Janelas Verdes para as viagens dos olhares intemporais que com ele se vão cruzando.

3 comentários:

  1. Belíssima reflexão sobre um olhar santo, um pouco nostálgica nos tempos estranhos em que vivemos. Mas é um olhar que te acompanhou quase sempre, Prof., pelo que é um olhar que transmite uma mensagem com vida!

    ResponderEliminar
  2. Um olhar interrogativo que continua a acompanhar-me e de certo modo a impressionar-me. As obras de arte superiores têm destes mistérios insondáveis...

    ResponderEliminar
  3. Com atitude, sempre vamos em frente. Texto sensível e profundo. Tudo de bom, meu amigo!

    ResponderEliminar